A Falácia dos Canudos: Um Bom Quadro Político Não Precisa de Ser Doutor

Num país onde a política se quer próxima das pessoas, a nossa Assembleia da República está cada vez mais distante. E não me refiro apenas a ideologias ou decisões controversas. Falo daquilo a que chamo, sem rodeios, a “falácia dos canudos”, a ideia de que só quem tem um diploma universitário, sobretudo em Direito ou em áreas académicas, está habilitado a legislar.

Esta ideia, profundamente enraizada na nossa cultura política, não só é redutora como perigosa. É uma visão elitista do poder, que confunde conhecimento técnico com sabedoria prática e ignora o valor de quem, todos os dias, vive na pele as consequências das decisões tomadas no conforto dos gabinetes parlamentares.

A maioria dos nossos deputados vem de meios académicos, dos partidos políticos ou da função pública. Onde estão os empresários, os empreendedores, os pequenos comerciantes, os operários, os jovens dos bairros esquecidos, os que lutam com a burocracia para abrir um negócio, os que sabem o que é pagar salários, impostos, rendas e ainda assim tentar sobreviver?

Quando colocamos apenas advogados, juristas e professores universitários na casa onde se fazem as leis, o que é que sai no final do dia? Mais leis. Mais complexidade. Mais camadas de burocracia e linguagem técnica que afastam o cidadão comum da própria democracia. Não há espaço para a simplificação, para a visão prática, para a pergunta essencial: “isto funciona na vida real?”, porque quem lá está raramente teve de lidar com as consequências daquilo que esta a legislar. E talvez ainda mais preocupante é o facto de não estamos a dar espaço aos visionários, às mentes criativas e ousadas, capazes de pensar o país de forma diferente.

Precisamos de líderes com experiência real no sector privado, na inovação, no empreendedorismo, pessoas com coragem para propor reformas, para simplificar, para arriscar novas formas de fazer crescer e desenvolver Portugal. Gente que não vive apenas de análises, mas de ação. Ao repetir o mesmo perfil, essencialmente juristas e académicos, tornamos o Parlamento quase numa extensão técnica do sistema.

Em vez de pensadores livres, temos executantes do status quo, profissionais altamente treinados para interpretar leis, mas não necessariamente para imaginar um país diferente. Falta audácia, falta rasgo, falta gente que conheça as dores do terreno e não apenas as regras do jogo. E não é com arruadas em tempo de campanha que se sentem os problemas reais do país. Isso só se percebe vivendo-os, não em visitas guiadas com bandeirinhas na mão.

É verdade que esses momentos de proximidade com a população também são importantes, ajudam a quebrar barreiras e humanizar os políticos. Mas quando se trata de representar, legislar e decidir, é preciso mais. É preciso ter vivido, compreendido e sentido na pele aquilo que se pretende transformar.Não me interpretem mal, a formação académica é valiosa. Mas não é, nem pode ser, o único critério para estar no Parlamento.

A política precisa de mais do que teoria: precisa de empatia real, de experiência no terreno, de visão prática. Um deputado que nunca enfrentou um sistema de saúde saturado, que nunca teve o salário mínimo como única fonte de rendimento, que nunca arriscou abrir uma empresa, pode realmente representar quem vive essas realidades todos os dias?

A democracia perde quando se fecha numa bolha de tecnocratas. Ganha quando se abre à diversidade, de ideias, de percursos, de origens. O povo não é feito só de doutores. E não deve ser representado apenas por eles.

Está na hora de quebrar esta falácia. A política não pode ser um clube exclusivo de académicos. Tem de ser uma casa aberta a todos os que têm algo a dizer, a propor, a mudar. Porque o verdadeiro mérito de um político não está apenas no canudo que tem na parede, mas na coragem de arregaçar as mangas e servir quem o elegeu.

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