Alguns acontecimentos ocorridos no passado dia 10 de Junho vieram relembrar a necessidade de estarmos atentos às guerras culturais que se vão vivendo no Ocidente, em geral, e em Portugal, em particular. Se é verdade que a guerra é a continuação da política por outros meios, não é menos certo que aquele termo pode perfeitamente ser substituído por “cultura”.
O discurso do presidente da República foi, nesse contexto, mais uma manifestação de má consciência, acompanhada de algumas reflexões perfeitamente desajustadas acerca de uma eventual pureza racial, ideia que hoje em dia não tem qualquer eco no universo da direita patriótica, aqui ou em qualquer lugar da Europa Ocidental. Fazer apelo a velhos temores ultrapassados há décadas, demonstra bem a incapacidade de a elite perceber e aceitar aquilo que está em causa e que é, simplesmente, um progressivo afastamento do eleitorado face àqueles que têm posto em causa elementos fundamentais como sejam a identidade, as raízes, a tradição.
Já no caso da escritora Lídia Jorge, o seu discurso foi ainda mais penoso, porque pejado de erros históricos. Não deixar que o rigor estrague uma boa narrativa, parece ser o lema de alguns quando escrevem ou falam no espaço público. Esquecer o papel no fenómeno da escravatura das redes de tráfico islâmicas, bem implantadas em África à chegada dos portugueses, ou exagerar largamente o número de escravos residentes em Portugal, só pode compreender-se por ignorância ou má-fé. Seja qual for a opção não fica bem a quem discursa em tão importante cerimónia.
Mais para o final do dia o sobressalto foi generalizado quando se soube que um actor da Companhia de Teatro A Barraca tinha sido agredido, alegadamente por um neonazi. Não vou aqui discutir se a agressão teve ou não contornos políticos (o alegado agressor veio posteriormente, em entrevista à TVI, assegurar que não), mas apenas discutir até que ponto o sucedido mostrou, novamente, o predomínio da esquerda no espaço mediático.
Um dos erros do Estado Novo terá sido a incapacidade de produzir militância sólida do ponto de vista político e cultural. As universidades permaneceram, em grande medida, lugares à esquerda, sobretudo nas áreas ligadas às chamadas Humanidades. O neo-realismo desenvolveu-se sem grandes obstruções, a pouca filosofia tinha como nomes principais gente ligada à oposição, boa parte dos escritores era não-alinhada, etc.
Depois do golpe de Abril de 1974 o espaço cultural ficou ainda mais à mercê da esquerda, mesmo que os governos fossem ocasionalmente de “direita”. E, 51 anos depois, é ainda esse cenário que se nos apresenta.
Já sabemos que sempre que a esquerda é derrotada em eleições demonstra o seu espírito democrático aumentando a agitação. O ruído amplificado pode levar a crer que é mais expressiva do que realmente é. A juntar a isso, a apatia da maioria e a pusilanimidade da pseudo-direita, sempre empenhada em provar as suas credenciais anti-fascistas facilitam a tarefa a quem foi rejeitado nas urnas por larga margem.
E foi precisamente o que vimos suceder no episódio da agressão ao actor. Nas horas e nos dias seguintes o espaço mediático foi tomado de assalto, o exagero foi a norma, e a tentativa de colagem do sucedido ao crescimento do Chega evidente. Quando o agressor veio dizer que nada tinha a ver com a “extrema-direita”, o seu testemunho foi relegado para o âmbito noticioso mais geral. A narrativa estava montada e a amplificação feita. Esta é uma táctica comum (lembram-se do “menino nepalês” barbaramente agredido, mas que nem sequer existia?). Tudo isto mostrou o controlo que a esquerda continua a exercer sobre o espaço mediático, jornalístico, cultural. Um controlo absolutamente desproporcional à sua presença real na sociedade. Mas que mostra como a estratégia gramsciana tem vindo a ter sucesso desde há décadas. Ocupadas as instituições, a escola, os media, as universidades, a possibilidade de difundir a mensagem é maior.
Isso quer dizer que a esquerda está a ganhar? Não. Porque, felizmente, os tempos são outros e os suportes também. Se a esquerda tem dominado as instituições e aí reproduzido o seu discurso (veja-se o caso da escola), a sua capacidade de moldar a percepção das coisas e criar as circunstâncias em que nos movemos é hoje menor. O advento da internet possibilitou-o. Daí a sanha persecutória e difamatória dos “iluminados” face a esse espaço. Daí a insistência na “manipulação”, nos “polígrafos”, em tudo o mais que faz parecer a informação veiculada no espaço internético um imenso oceano de falsidades.
Especialista em manipulação, desde as fotografias retocadas na era estalinista aos relatórios económicos falsificados pela Stasi na RDA, a esquerda vê hoje fugir-lhe a capacidade de controlar o suporte da mensagem. E daí a preocupação em controlar o que se diz e escreve na internet, sempre a pretexto de boas razões, sejam elas o “discurso de ódio”, a desinformação, etc.
Serve isto para dizer o óbvio. Sim, parece preocupante o ascendente da esquerda no espaço mediático e cultural. Sim, a ausência da direita (não da direitinha) desse espaço é notória. Não, a guerra cultural não está perdida e nunca esteve tão perto de poder ser ganha. Porque são hoje cada vez menos os que se atêm aos media tradicionais. Porque são cada vez mais os meios alternativos de que dispomos para o contraditório e para fazer passar a nossa mensagem.
De preferência com sólida formação (o que implica não nos desligarmos desse objecto sagrado que é o livro), operacionalizando esses conteúdos num espaço que não tem como mestres os iluminados de décadas. O Estado Novo foi incapaz de gerar um escol intelectual, e perdeu. O regime actual, convencido da sua superioridade inata e da ignorância dos seus adversários “populistas e deploráveis”, permaneceu distraído face aos novos meios que foram surgindo. Os seus ilustres pensadores foram ficando a falar para eles mesmos nas suas televisões e jornais. Aparentemente dominantes, talvez ainda não tenham percebido que falam para audiências cada vez menores. Vamos deixá-los continuar a cometer esse erro e vamos aprender com tudo isto para fazer a nossa mensagem chegar cada vez mais longe. Pois mesmo que não faça fruto fará efeito, como diria o Imperador da Língua Portuguesa. E isso pode fazer toda a diferença.