Dizem-nos que o povo é quem mais ordena. Dizem-nos que o nosso voto conta. Que somos importantes. Que temos, todos juntos, de combater a abstenção, esse ressentimento silencioso, perigosamente desgastando o contrato social putativamente estabelecido entre a classe política e os cidadãos. Em véspera das eleições, todos apelam à participação eleitoral, em nome da democracia. No dia seguinte, muitos proclamam abertamente, contorcidos pelas mais engenhosas acrobacias mentais, que certos votos valem menos que outros, em nome dessa mesma “democracia” …
Não sendo surpreendentes, estas reações aos resultados eleitorais por parte da generalidade do comentariado, jornalistas “imparciais” e mesmo de alguns atores políticos relevantes, não podem deixar de causar um renovado sentimento de camoniano desconcerto. Afinal, parece que à definição de “socialistas democráticos” (esse espetacular paradoxo com que a guarda do regime a si própria se define) deveria acrescentar-se: “… quando ganham”. Alguns exemplos: Henrique Monteiro, cacarejando em canal aberto de televisão, dispôs que PS e PSD deveriam negociar secretamente um acordo de governação, excluindo desse modo o CHEGA de qualquer influência nesse sentido.
Eurico Brilhante (a ironia!) Dias, em debate com Pedro Frazão, vangloriou-se da despótica tentativa de bloqueio ao representante do CHEGA para a vice-presidência da Assembleia da República no início da legislatura anterior, rumorejando ciciante que pretende reincidir nessa tolerante conduta do seu partido. E depois há Ana Gomes! O que dizer acerca de Ana Gomes sem o preventivo consolo de um manual de psicopatologia (em benefício apenas da lucidez argumentativa…)? Que uma parte substancial do povo é incauta e precisa de ser guiada pela luminária doutrina socialista – “O povo é quem mais ordena, mas o povo nem sempre tem razão…”? Que o CHEGA – o seu líder, os seus representantes, os seus eleitores, mesmo os seus simpatizantes – é VENENO, e que esse mesmo povo apresenta, aparentemente, tendências suicidas?
A soberba socialista é esta – “a democracia somos nós”. Para eles, se o povo votar de modo diverso, é o povo que está errado. O dogma da infalibilidade socialista é a pedra sobre a qual se edificou este regime, ruinosamente visível para todos, agora que essa construção de despotismo progressista se desmorona e os seus alicerces se destacam. Entre o socialismo e a democracia, eles preferem fatalmente o socialismo – mesmo contra o próprio povo.
O mesmo pressuposto subjaz a propósito da suposta inconveniência política de uma revisão constitucional. A nova bandeira da moda dessa diminuída claque de parlamentares “dialogantes” e “inclusivos” (naturalmente propagandeada pela comunicação social, mas espantosamente defendida mesmo entre alguns representantes que se dizem “de direita”) parece ser a de que uma revisão constitucional sem o PS é politicamente inviável, ou de algum modo espúria, por se tratar de “um partido fundador da nossa democracia”.
A assunção pública desta posição (deveria escrever – presunção), ao arrepio de qualquer consagração jurídica (não me recordo, enquanto estudante de direito constitucional, de alguma vez ter esbarrado com esse artigo, ou sequer doutrina, acerca da necessidade da anuência do PS para uma revisão da lei fundamental do Estado…) revela lapidarmente essa mentalidade mesma. Os socialistas são a nova aristocracia e julgam-se donos deste regime. Porque o pluralismo de opinião e o rotativismo governativo são características das modernas democracias ocidentais, simularam durante meio século tolerar uma “direita” social-democrata (que é uma filha bastarda sua, como a doutrina e a prática abundantemente ensinam), mas recusam reconhecer plena autonomia política ao espetro ideológico genuinamente concorrente, agora que este espetacularmente se afirmou. Em resumo, uma direita sem direitos.
Socialistas de todo o país, percebam isto finalmente – nem a constituição, nem o regime, nem a democracia, nem o povo, nem Portugal vos pertencem. Parafraseando uma frase que, entretanto, se tornou viral: está visto, revisto, provado e comprovado que socialismo e democracia não se podem conjugar na mesma frase.