O Ano da Eleição de Ricardo Reis

Costuma-se dizer que há pessoas que se adaptam às circunstâncias do tempo, enquanto outras afirmam-se e fazem o tempo girar à volta da sua presença. E se Pessoa nos ofereceu Ricardo Reis como quem faz regressar à sua casa uma figura que chega a Lisboa vindo do outro lado do Atlântico, discreto, pensativo, submerso nas sombras dos versos e da dúvida, agora temos outro Ricardo, não saído de obras nem de páginas, mas de uma carne nova de um Parlamento velho, e que não desce de um navio, mas sobe à tribuna como quem sobe ao topo da fortaleza em tempo de invasão.

Ricardo Reis, o deputado, jovem como a juventude o faz ser, mas sério como um sábio romano que acabasse de antecipar que Roma se afunda, não trouxe ao hemiciclo nem poesia métrica, nem latim requentado, nem os heterónimos à espera de exegese. Traz, em vez disso, a amarga angústia de quem se despediu de demasiados amigos à porta do aeroporto, com diplomas na mala e olhos a evitar as lágrimas do olhar das suas famílias.
E traz também uma língua que não se curva: clara, sarcástica, afiada. Quando diz que a AD é “milhocem”, não ri para fazer rir. Fere para que sintam as verdades.

Ora deixai o barco navegar, dizia a propaganda, deixai o Luís trabalhar, e deixai o povo, esse povo esquecido, ser feliz. Mas o Ricardo, o outro Ricardo, o nosso, que se senta nas cadeiras vermelhas onde antes outros se encostaram para dormir, recusa esse sono. E diz-nos, olhos nos olhos, que o barco não navega, que a gente não sorri, e que o Luís, esse tal Luís, não trabalha para os nossos. Trabalha, talvez, para estatísticas, para quotas europeias, para sonhos alheios que se impõem aos nossos.

Se o Ricardo de Saramago fugia ao mundo real, procurando consolo no silêncio dos clássicos e na paz do não-intervir numa compostura de quem observa e não age, este aqui, o de carne e câmara, já viu demais para se calar. Fala porque doeu ficar calado. Age porque há feridas abertas e tempo nenhum para esperar cicatrizações. Levanta-se, porque tantos outros caíram no hábito de se acomodarem ao assento.

“Vai priorizar os jovens face aos que vêm de fora?”, pergunta ele, sem vacilar, como quem desafia um rei sentado no seu trono. Mas a questão é só a superfície. Por debaixo flui um profundo rio de um sistema que se esqueceu de quem aqui nasceu. Não é contra o outro, é pelo nosso. Não é contra os que chegam, é pelos que partem. Porque há maior dignidade em fazer regressar um filho do que em receber mil anónimos no caos de um sistema cego.

O Ricardo de Saramago esperava que tudo passasse, que o mundo fosse, que o tempo o levasse com as folhas de outono. Este Ricardo, o nosso, tem os pés pregados na terra, e não vai a lado nenhum enquanto houver coisa por dizer. E diz.

E se há um ano que importa relembrar, um ano que quebre os ciclos rotineiros da política onde tudo se repete e se recicla e se perde, então que seja este, o ano da eleição de Ricardo Reis. Um ano onde não se cumpre a liturgia das palavras gastas, mas se anuncia um novo verbo: o verbo insurgir.

Porque este Ricardo não é Reis de mero apelido.
É Ricardo Reis porque trabalhando vem se afirmar.

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