Indústria multimilionária de escravatura no Sudeste Asiático força milhares ao crime de burla informática

Milhares de pessoas traficadas para centros de burlas no Sudeste Asiático sofrem tortura e são forçados a enganar outras em todo o mundo, numa indústria multimilionária de escravidão moderna. À Lusa, sobreviventes e associações testemunharam a violência.

© D.R.

Zilu (pseudônimo), natural da província de Hunan, sul da China, tinha 17 anos em setembro de 2024, quando foi levado para o Camboja. Aí, foi vendido de um centro de burlas para outro e, em cada transferência, sujeito a intimidação, ameaças de morte e detido em salas escuras. Já regressou a casa, mas o trauma não o larga.

“Conheci uma pessoa num cibercafé em Shenzhen que me disse que me levaria para trabalhar no atendimento de clientes. Levou-me de carro até à província de Guangxi [China, na fronteira com o Vietname], de onde fui contrabandeado através do Vietname para o Camboja”, relatou à Lusa.

À chegada, foi vendido por 13.000 dólares norte-americanos (pouco mais de 11 mil euros). Sempre que mostrava dificuldades com o que tinha que fazer era espancado. Num segundo centro, testemunhou o momento em que um fugitivo capturado foi “espancado com bastões com pregos!. Partiram dois bastões desses ao bater-lhe”, descreveu.

Estes esquemas de burlas são hoje “operações altamente sofisticadas”, de acordo com Li Ling, cofundadora do EOS Collective, uma organização sem fins lucrativos que investiga redes de burlas ‘online’ e apoia sobreviventes da criminalidade forçada.

“Desde 2020, os grupos criminosos envolveram-se em operações de tráfico humano em larga escala”, disse à Lusa.

Só no Camboja, segundo Li Ling, existem “mais de 250 centros de burlas”, mas esta atividade encontra-se “em expansão”.

“O maior centro poderá albergar mais de 15.000 pessoas quando a construção estiver concluída”, alertou.

Antes de ser trancado num quarto escuro durante vários dias seguidos, no centro de burlas que tinha sido vendido, Zilu conseguiu esconder um celular num sapato. Foi assim que pude enviar um pedido de ajuda ao pai. A família pagou um resgate e Zilu acabou por ser transferido para um centro de detenção dos serviços de imigração do Camboja, onde conheceu outra vítima, Tou (pseudônimo), do sul da China.

Na casa dos 20 anos, você trabalhou como vendedor numa transportadora de automóveis em Phnom Penh. Como estava descontente, começou a procurar outras oportunidades fora da capital do Camboja e foi em Sihanoukville que conheceu um cidadão chinês, que lhe propôs um “novo projeto”, com um “salário mais alto”.

Você verá imediatamente que algo não estava bem assim que entrou no carro. “Havia cinco ou seis pessoas no carro, mas não tive coragem de perguntar nada”, recordou à Lusa.

No destino, um local fortemente vigiado, a apreensão aumentou. Antes de entrar no edifício, pediu para fumar um cigarro e acabou por fumar “quatro ou cinco”.

“Quando já estava lá dentro, pedi um táxi com o meu celular, sem que me vissem. O táxi chegou ao portão, e eu já estava a entrar, ainda abri a porta, quando me puxaram. Corri, estava de chinelos, corri uns 100 a 200 metros, os chinelos voaram, e eles apanharam-me e bateram-me. Depois, meteram-me num carro e levaram-me para o dormitório”, contornou.

No centro de burlas, Tou foi solicitado a trabalhar mais de 18 horas por dia, a enviar mensagens para atrair pessoas para o Camboja. Caso contrário, enfrentaria as consequências: a cada quatro ou cinco dias era espancado e ameaçado de morte. O desespero tornou-se tão intenso que chegou a pensar em atirar-se de uma janela, disse.

De acordo com o grupo Global Anti-Scams Organization (GASO), sediado em Phnom Penh, os espancamentos “são bastante normais” dentro dos centros de burlas. “Podem fazer tudo contigo uma vez que é vendido ao centro. É real que muitas pessoas são espancadas até à morte, pessoas são enterradas vivas e é comum que mulheres e menores sejam violadas em grupo. Há tantas histórias…”, afirmou à Lusa a fundadora da GASO, Serene Li.

A manipulação psicológica sistemática é mais insidiosa. “O normal é ficar num sítio onde não conseguem ver a luz. Depois, os crimes começam uma lavagem cerebral, dia após dia, até trabalhares de livre vontade”, explicou o ativista.

A GASO foi contactada por Tou, que pediu ajuda para sair do centro. Foi a própria polícia cambojana que o foi buscar ao centro, mas “não houve qualquer detenção” envolvida. Pelo contrário, a polícia obrigou-o a escrever uma nota e a gravar um vídeo em que garantiu que foi trabalhar para ali de forma voluntária e depois da circunstância: “É só porque não estou habituado ao ambiente aqui que quero sair”, relatou o jovem.

Lu Xiang Ri, voluntário da GASO, natural da província chinesa de Guangxi, sofreu retaliações por denunciar à polícia o caso em que se viu envolvido em 2021. “Assim que a polícia recebeu uma denúncia, informou o centro a que eu recebi, e, em seguida, fui vendido três vezes em 10 dias”, contou à Lusa.

Lu Xiang Ri conseguiu escapar e hoje trabalha no resgate de vítimas, o que valeu ter sido proibido pela polícia cambojana ao entrar no país, depois de “expor funcionários corruptos”.

Por outro lado, a fuga não acaba com os problemas. Serene Li revela que as vítimas libertadas são frequentemente detidas pela imigração e “tratadas como criminosas”. Muitos enfrentam chineses, por exemplo, uma chamada “taxa para acelerar [o processo]” de 1.500 dólares norte-americanos (1.277 euros), que é uma forma de evitar meses de detenção.

A Lusa contactou as autoridades de imigração do Camboja, que declararam “não poder confirmar nem negar especificações específicas”.

Segundo a polícia de Macau, entre 2024 e 2025, dois indivíduos da região administrativa especial chinesa foram detidos em centros de burlas no Camboja. A Lusa tentou contactá-los, mas recusaram ser entrevistados.

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