A 1ª Guerra Mundial encontra o conflito eletrónico nas trincheiras do Donbass

Numa frente de combate no Donbass, clássicas trincheiras ucranianas convivem debaixo de terra com tecnologia de ponta e “olhos” eletrónicos, que, entre a densidade da floresta e pântanos gelados, vigiam um inimigo bem municiado e “capaz de tudo”.

© Facebook de Volodymyr Zelensky

Esta é a frente de Lyman-Kupiansk na direção de Kremina ocupada pelas tropas russas, na província de Donetsk, leste da Ucrânia, para onde foi destacada a Brigada Khartia, a última constituída no Exército ucraniano, inicialmente formada por voluntários sob o comando da Defesa Territorial e, desde abril, integrada no programa ofensivo da Guarda Nacional, em todas as suas vertentes, incluindo infantaria, artilharia e guerra eletrónica.

Enquanto toma o caminho coberto de neve num bosque cerrado de pinheiros vermelhos em direção da frente de combate, Titan, comandante do 13.º Batalhão da Brigada Khartia explica à Lusa que a situação neste setor é “muito complicada, mas sob controlo”, e que os seus militares estacionados há dois meses assumiram uma posição defensiva, após um semestre inteiro de uma contraofensiva que ficou aquém das expectativas de Kiev.

Os papéis inverteram-se entretanto, as tropas russas tomaram a iniciativa nesta região de altíssima instabilidade e “atacam com algum sucesso”, com disparos de armas ligeiras, artilharia e bombas, “em suma, tudo o que têm”. Mas as suas forças terrestres “não conseguem avançar”, assegura.

“Chamamos-lhes ‘tropas de assalto de carne para canhão’”, conta Titan, descrevendo o uso de condenados à prisão, que “gozam dessa ‘liberdade’ como motivação extra, mas as suas vidas são inúteis para eles [comandos russos]” – a par de unidades “muito bem preparadas que jamais podem ser subestimadas” -, frisando que as tropas ucranianas fazem o inverso e preservam ao máximo os seus soldados, desde logo no treino militar, até porque a base de recrutamento é muito menor.

Em simultâneo, as forças de Kiev travam uma luta desigual em termos de munições, segundo o comandante. “O nosso batalhão até está razoável nesta fase, mas outros não. Não nos podemos permitir usar a mesma quantidade de bombas dos russos. Preferimos a qualidade à quantidade e disparar pela certa só quando detetamos posições”, refere, ao contrário das tropas inimigas, que “podem disparar à toa e ver se acertam nalguma coisa”.

Este é um bom momento para o exemplificar. Faz um tempo miserável na frente de Lyman-Kupiansk há dias, a neve acumula-se, e o céu fechado não permite localizar alvos. Ocasionalmente, escutam-se tiros de artilharia. São russos, mas ninguém se mexe, porque vão para longe.

Sob a floresta densa, entre máquinas que escavam valas profundas, Titan abre uma porta camuflada que dá acesso a um sistema de túneis da liderança do seu batalhão, e mostra uma camarata com beliches, iluminada e aquecida por uma salamandra: “O ‘hotel’”.

Com apoio dos engenheiros da unidade, foi possível construir em apenas duas semanas, e quase tudo à mão, estas trincheiras, numa recriação prática da I Guerra Mundial, com três camadas de teto em troncos, terra e areia, contra os bombardeamentos aéreos, e ainda por acabar. Nesta etapa, a exposição dos obreiros podem torná-los numa “árvore de Natal” e a velha máxima mantém toda a sua atualidade: “Quanto mais cavas, mais vives”.

Um túnel rudimentar de uns dez metros de comprimento conduz a outra porta e, atrás dela, apresenta-se a sala de comando. A escuridão dá lugar ao brilho de monitores dos ‘laptops’, perscrutados por um grupo de homens concentrados, e de ecrãs gigantes nas paredes, transmitindo imagens de um ‘drone’ em ação, exibindo extensos mantos de neve e poucos sinais de vida, ao lado dos mapas luminosos do teatro de operações:

“É daqui que comandamos todo o batalhão”, diz Titan, apresentando cordialmente cada elemento na sala, desde o chefe de operações e seu assistente, ao técnico de comunicações e operador do ‘drone’ (ou os “’olhos do batalhão’, que veem muito mais longe”), e um analista aéreo, que corrige posições em tempo real e transmite as coordenadas à artilharia sobre um alvo a abater.

Também há um analista de informações militares: “Está atento a todos os dados, até de comunicações civis, que possam dar indicações sobre a movimentação do inimigo – como se move, o que está a fazer, as munições que usa e onde – e é com base neles que tentamos antecipar os passos seguintes”.

Na sala de comando, dominado pela bandeira da Brigada Khartia, com os seus motivos geométricos de inspiração cossaca, e posicionada a uns cinco quilómetros da primeira linha da frente, existem ainda mapas convencionais e maquetes com a localização das unidades ucranianas e russas, como num jogo de tabuleiro. Tudo à escala de um centímetro para 50 metros, o que significa, de acordo com a disposição das peças, que os dois lados estão separados por apenas 250 metros.

Do outro lado da linha da frente, existirá um sistema em tudo semelhante e os russos também terão as suas trincheiras e salas de comando e lançarão igualmente os seus ‘drones’, antecedendo baterias de fogo: “Sabemos que estão lá, mas não os vemos. Quando disparam, é mais fácil identificá-los”, conta o comandante do batalhão, descrevendo “um inimigo capaz de tudo, até de armas químicas”. Mas receia que os tribunais internacionais “não vão ver nada”.

Toda a região em torno dos combates está amaldiçoada por um cenário de desolação, de pontes destruídas nos primeiros dias da invasão russa, em 24 de fevereiro de 2022, e casas abandonadas em aldeias que interrompem a monotonia da floresta branca. É nalgumas delas que se instalam os soldados quando não estão nas trincheiras.

Raichyk, 26 anos, chegou a esta linha vermelha da guerra na Ucrânia há dois meses, após ter passado longas semanas nas operações de contraofensiva. Ofereceu-se como voluntário em 04 de março de 2022, escassos dias após a invasão o ter apanhado como técnico de construção na vizinha Polónia. E quatro dias antes de a sua casa ter sido ocupada na cidade de Oleshky, na margem esquerda do rio Rio Dnieper e próxima de Kherson, no sul do país. “Estou aqui para recuperá-la”, justifica.

Os russos abateram um dos seus melhores amigos e é deste tipo de relatos acumulados que os militares também encontram parte da motivação para continuar a combater quase dois anos depois, quando nas trincheiras já se passou a fase dos primeiros grandes discursos, mas ainda repetidos, sobre a democracia contra a tirania, o bem face ao mal, ou a luz que vencerá as trevas.

“Claro que apoio esses valores, mas o principal é defender as nossas casas e famílias. Porque devemos aceitar alguém que veio para roubar, pilhar e assassinar civis? Isto é algo que qualquer ucraniano pode entender”, explica o soldado, mostrando imagens no telemóvel de um treino de tiro com o líder do Kremlin, Vladimir Putin, na mira, como o rosto da criação desta guerra que Raichyk não pediu.

Passando à prática, esta pode mostrar-se na sua forma mais violenta. Quando os russos lançam pesadas bombas aéreas, é enviada uma mensagem pelo comando para as trincheiras, dando aos soldados dois minutos para se protegerem: “Num só dia, chegaram a ser 20…”

Os seus ‘drones’ também serão mais sofisticados e, sempre que são intercetados por meios radioeletrónicos, “haverá alguma coisa nova a aprender”. O militar é, porém, incapaz de mostrar compaixão pelos inimigos que, como ele, foram chamados a lutar: “Respeito-os pelo seu profissionalismo. De outro modo, morrerei mais cedo. Do ponto de vista humano, nem pensar. Por que o faria com quem executa prisioneiros e deixa os feridos para trás?”.

Bogdan traz o mesmo argumento na ponta da língua. A guerra para ele começou em 2017 no conflito no Donbass, sendo para ele cristalino que a Rússia não se ficaria por ali. Aos 26 anos, passou mais de um quarto da sua vida no Exército: “Nunca acreditei na diplomacia, confio apenas no combate”.

Os dois soldados tornam-se peritos na utilização de ‘drones’ e explicam que podem ser máquinas assassinas, mas pouco se fala das vidas que salvam, quando detetam um militar dado como morto ou desaparecido, ou levam primeiros socorros a um ferido. “Quando tudo isto acabar, teremos todo o prazer em ensinar aos amigos portugueses estas novas formas de guerra”, afirma Bogdan, um apreciador de Portugal e de Cristiano Ronaldo, e que deixa um apelo: “Contribuam para a nossa luta, que é também vossa. Um euro que seja…”.

Na cantina das camaratas não falta nada. As próprias comunidades junto à linha da frente dão os alimentos que podem. Mas não têm ‘drones’ nem munições, que se foram tornando cada vez mais escassos.

“No começo da guerra, tínhamos tudo o que precisávamos. Depois, começou a diminuir. A seguir, veio a fase de ‘poupem bem isto’. Foi o sinal. E agora aqui estamos”, comenta Baku, comandante de uma unidade de morteiros na Brigada Khartia, insistindo na ideia do recurso ao mais alto critério na definição dos alvos antes de ser dada a ordem de fogo, que seria inútil neste dia dominado pelo “general inverno”,

Para compensar a escassez, o militar de raízes azeris expõe o lado mais inventivo das tropas ucranianas, na forma de invólucros plásticos em impressões 3D semelhantes às munições reais e preenchidos com cargas explosivas. “E resulta”, como demonstra, num vídeo gravado no seu telemóvel, de um arremesso à mão num pátio cheio de gelo, onde outros soldados calibram uma peça de morteiro.

Voltando ao soldado Bogdan, que repousa na sua camarata aquecida, dedica-se agora a lembrar a família com filhos, um deles com menos de um ano, que permanece em paragens menos inseguras da Ucrânia. Cada vez que os visita e volta a partir, despede-se sempre do mesmo modo: “Vou trabalhar”.

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