Portugal tem dois vizinhos imediatos. Na península, a Espanha. No norte de África, aqui ao lado, Marrocos. A nossa História confunde-se com a de ambos. Do actual reino de Marrocos partiram os repetidos movimentos de expansão islâmica que foram determinando a vida do Portugal medieval; da mesma forma, ao libertar-se da prisão peninsular, procurando pontos de apoio que o escudassem da pressão sempre poderosa de Castela, Portugal foi encontrá-los primeiro na costa norte-africana. A empresa de Ceuta, depois florida numa rede extensa de praças luso-marroquinas, é o exemplo mais alto dessa constante secular.
Lisboa continuou a valorizar Marrocos bem além das glórias do século XV. Se Ceuta foi perdida com a Restauração, valerá a pena ter presente que Portugal continuou a ser, também, uma nação norte-africana até fins do século XVIII: só então, em pleno regime pombalino, se abandonou Mazagão, a última das fortalezas portuguesas na região. Esta teimosia em manter uma presença – no caso, de natureza militar – em terra marroquina não resultou do acaso, nem foi irracional. Naqueles séculos de corso intenso – temor que a memória popular guarda na expressão ‘anda mouro na costa’ – estar em Marrocos era facilitar o combate aos ataques frequentes de piratas muçulmanos à costa portuguesa. Sobretudo, era ter a sul da Espanha – principal ameaça histórica à independência – uma constelação de bases navais que a forçassem a dividir forças, cobrir o tráfego marítimo e considerar possibilidades de represália portuguesa. Além de uma proximidade humana e comercial permanente, Marrocos cumpriu sempre, assim, papel determinante na formulação de uma estratégia geral portuguesa.
Hoje, o Reino de Marrocos é uma potência económica e militar em rápida ascensão. Amparada por um poderoso Estado administrativo, com forças armadas coesas, fortes serviços de informação, uma população jovem e grande (os marroquinos são quase quarenta milhões) e uma instituição monárquica que tem garantido a estabilidade e a paz sociais, a economia desenvolve-se com vigor. Este ano, pela primeira vez, Marrocos ultrapassou a África do Sul e tornou-se o primeiro fabricante automóvel de todo o continente africano. O dinamismo do país não tem passado despercebido internacionalmente: em 2020, Marrocos e Israel estabeleceram relações diplomáticas; no mesmo ano, o presidente Trump reconheceu a soberania de Marrocos sobre o Saara Ocidental, ex-território espanhol que Marrocos anexou em 1975. Embora tenha sido durante muitas décadas o principal defensor da independência sarauí, a própria Espanha adoptou uma postura pró-marroquina em 2022.
As regras da geopolítica são determinadas pela geografia – como não muda esta, são permanentes aquelas. Embora seja decididamente o país que mais teria a ganhar com uma parceria estratégica firme e de longo-prazo com Rabat, Portugal parece singularmente desinteressado em abrir-lhe caminho. Enquanto os EUA, Israel e a Espanha – assim como, com toda a probabilidade, um futuro governo do Rassemblement National em França – reconhecem a marrocanidade do Saara Ocidental, Lisboa mantém-se teimosamente agarrada às velharias de um anti-colonialismo obsoleto. Só isso pode explicar a actual posição de Portugal sobre o conflito, baseada no reconhecimento do ‘direito do povo sarauí à autodeterminação’. Ora, o povo sarauí já está autodeterminado enquanto parte de Marrocos, que lhe concede direitos irrestritos de cidadania. Entretanto, este atavismo diplomático, eco de um discurso há muito ultrapassado, sabota injustificadamente o desejável aprofundamento da relação luso-marroquina.
Bem pelo contrário, o interesse de Portugal reside na construção de uma amizade estreita com Marrocos. Para nós, ter Rabat como aliado significa, como no passado, garantir um parceiro regional capaz de diminuir a dependência económica de Portugal em relação à Espanha, país com quem mantemos 30% do nosso comércio externo. Marrocos é um mercado imenso e em expansão. É, ainda, um vizinho com quem Portugal não tem o menor atrito, e um aliado crucial a garantir no combate à imigração e ao tráfico de pessoas de África para a Europa. É tempo de repensar Marrocos, pois, de pensá-lo como aliado estratégico de primeira importância e de agir em conformidade.