30 Abril, 2024

Gente zangada e rabugenta

© Folha Nacional

António Barreto é uma raridade no regime. Ao contrário da maioria, é homem inteligente; ao contrário de quase todos, tem algo a dizer. É assim até se o faz com acinte classista. Quando, aqui há tempos, descreveu o CHEGA como ‘partido de gente zangada e rabugenta’, a fórmula lembrou a de Hillary Clinton, que em 2016 se dirigiu aos eleitores de Trump como ‘deploráveis’. Mas não confundamos as coisas: Clinton ficou-se pelo insulto; Barreto tentou a análise. E não se enganou inteiramente.

Vejamos: fala o CHEGA pelos portugueses zangados? Sim, mas apenas porque os portugueses o estão – e a culpa disso, por certo, não é do Chega. Se a frustração tomou conta do país, a responsabilidade não é de quem a ouve, a reconhece e a vocaliza: é de quem a produz. O Chega não inventou a fúria de ninguém. Não a manipula, não a fomenta, não conspira nem inspira a exaustão que as pessoas manifestam pelo voto. Se há cansaço com o regime, ele é obra do próprio: é reacção, aliás justa, necessária e natural, a um estado de coisas que se fez intolerável. É resposta à corrupção que transformou o Estado em esquema de enriquecimento, armado contra os portugueses que trabalham por quem tem e pode. É a recusa, colectiva e racional, em continuar como se nada houvesse pelos que assistem à emigração da juventude qualificada e à imigração da massa desqualificada, percebem o apagamento da soberania nacional pelo soviete de Bruxelas ou descobrem o seu país ultrapassado em renda per capita pela Polónia e pela Roménia. É a inversão de marcha de quem vê a aproximação do precipício. Afinal, queriam o quê?

Isso, bom, sabemos nós. A casta esperava a tranquilidade de um naufrágio sem queixas. Décadas de poder absoluto tinham-nos convencido de que os portugueses, caídos aparentemente em sono tão profundo, não acordariam mais – de que, mesmo falhando em todas as frentes, mesmo empobrecendo, mesmo desindustrializando, mesmo precarizando, mesmo corrompendo, mesmo vendendo o interesse nacional ao melhor pagador, tudo poderia continuar sem adversário nem protesto. Enganaram-se.

Os portugueses estão zangados, graças a Deus. Estão zangados porque estão vivos: só a mais profunda alienação, só o mais total delírio suicida, permitiria outra coisa. O que não estão é rabugentos. A rabugice vive sentada. É preguiçosa. E é inútil. A rabugice não faz revoluções, não vira sistemas, não assusta poderes. Março promete algo inteiramente diferente. Antevê, pela primeira vez em cinquenta anos, uma disputa a três. Mostra, para surpresa de muitos, que Portugal não irá ao fundo sem dar luta, sereno no caminho de uma morte lenta, progressiva e asfixiante. No mínimo, vai tentar mudar a história do seu futuro. No que dará isto? O tempo dirá, mas o fundamental, aí, é o que um dia escreveu Bernanos: ‘a esperança é um risco a correr’.

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