Liberdade de traição

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Entendem os portugueses que o parlamento se ocupa, exageradas vezes, de matéria irrelevante. Em geral, entendem bem. Demasiada política-politiqueira; demasiada espuma dos dias; demasiado aproveitamento rasteiro e teatral do tempo precioso das instituições do Estado para golpes engendrados – sempre que útil, em proveito egoísta; sempre que necessário, contra o bem comum. Décadas desse espectáculo tão repetitivo quanto deplorável acabaram a cansar soberanamente o povo português, que soberanamente, também, puniu com vigor incomum quem dele se tinha habituado a viver. Mas isso foi a 10 de Março, e 10 de Março já lá vai. Adiante.

Se a Assembleia da República levou a cumes de perfeição a arte de desbaratar tempo – o seu e o do povo -, esse é pecado de que ninguém teria podido acusá-la no passado dia 17. Em debate esteve problema de transcendental importância: primeiro, se, na democracia madura e livre que é o Portugal de 2024, há ou pode haver freio à liberdade de discurso e de proposta; segundo, se, aceitando-se o princípio de que ele pode existir, quem o define, quando e para que práticas concretas. Ganharam corpo – e definiram-se em campos opostos – as leituras possíveis do assunto com dois affaires recentes. 

Tratemos de definir estas leituras – e de revisitar os affaires. Uma, sustentada solitariamente pelo CHEGA contra todos os outros partidos, tem por inadmissível que um presidente português surpreenda o país – sem consulta, sem a participação do governo, sem mandato de ninguém – com uma ofensiva hostil e de duplo flanco. Não foi menos que isso o que Marcelo fez a Portugal: de um lado, imputando-nos uma culpa colectiva por supostos crimes com séculos; do outro, impondo-nos castigo sob a forma de ‘reparações’ a pagar por todos nós. Nada disso, esclareceu o regime: por muito que a diabolização do povo português e a exigência de compensações de valor incalculável – incalculável porque não há como calculá-las racionalmente – constituam manifesta violação da função presidencial, que é a defesa da unidade e do interesse nacionais, Marcelo mais não fazia que dar uma opinião ‘livre’. Respondeu o CHEGA que, se são sagradas as liberdades de pensamento e expressão, não é em nome próprio e enquanto cidadão que se exprime Marcelo Rebelo de Sousa – é como Presidente da República. As suas declarações não o comprometem a ele, nem são exercício de liberdade: comprometem o Estado e a nós; são matéria de responsabilidade política que é atribuição constitucional da AR vigiar. Ou seja: liberdade, sim; deserção do posto e fuga ao dever, não.

Não tardou até que esta máscara de falso absolutismo liberal caísse e fosse estatelar-se no chão. Ao fim de dias a garantir não ser anormal ou condenável que um Presidente da República se exprima contra o próprio país, lá encontrou o parlamento, afinal, a fronteira categórica da sua tolerância: eram os turcos e o seu direito inegociável à não-generalização, à honra e ao bom nome. Possuímos nós, de acordo com o parlamento português, eleito pelos portugueses, governado pela lei portuguesa e casa da soberania portuguesa direito comparável à dignidade colectiva? Não. A difamação dos portugueses é inatacável: é um direito fundamental. Diferente é uma inocente brincadeira com os turcos: isso é discurso de ódio. Eis aqui, na plenitude do esplendor, a lógica grotesca do globalismo e de quem em Portugal lhe dá face: este regime, estes partidos e esta gente. Não são anti-nacionalistas: são anti-nação. Não são pela liberdade de expressão: são  pela liberdade de traição. 

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