ESCRAVATURAS

Há já alguns anos uma publicação francesa referia-se a Lídia Jorge como “a grande dama das letras portuguesas”. Felizmente não se lhe referiu como a grande dama da história portuguesa, pois se o tivesse feito corria o risco de ser desmentida com estrondo.

 A Sra. Jorge, lídima escritora, a crer nos nossos amigos franceses, não terá certamente o mesmo pendor para a história pelo que se pôde ver no seu discurso do 10 de Junho. E ainda bem. Porque, se a razão pela qual proferiu certas afirmações não radica na ignorância, então poderá radicar na ma-fé, ou numa deficiente interpretação dos factos, o que é sempre lamentável.

 Duas ou três notas, pois, para esclarecer o óbvio.

 Não foram os portugueses a iniciar o tráfico oceânico e em larga escala de escravos. Quando chegámos a África já as redes muçulmanas se encontravam solidamente implantadas, prosseguindo um percurso que durou até ao século XX. Basta recordar que a escravatura foi abolida na Mauritânia em 1980. Na Arábia Saudita, país mais progressista, a data foi a de 1962.

 Esse tráfico levado a cabo pelos muçulmanos afectou também os europeus e os norte-americanos. Entre os séculos XV e XVIII, foram entre 1.250.000 e 1.500.000 os europeus escravizados por piratas norte-africanos (e vivendo em condições absolutamente miseráveis nos cárceres de Marrocos ou províncias otomanas, à espera de um possível resgate que os libertasse, tentados por uma conversão ao islão que lhes amenizasse a sorte). 

 Entre estes infelizes estavam muitos portugueses e alguns nomes famosos, caso de Miguel de Cervantes, vendido em Argel. Esta e outras cidades, como Tripoli ou Tunes, possuíam florescentes mercados de venda de escravos, de tal forma que ainda hoje o fenómeno ecoa além-Atlântico. Quando os marines norte-americanos entoam o seu hino e nele fazem alusão às “costas de Tripoli”, é a esta cidade líbia que se referem. E não, não é devido a alguma acção militar levada a cabo no tempo de Kadhafi, mas sim às primeiras missões levadas a cabo no exterior pela marinha norte-americana. Missões de combate, precisamente, à pirataria norte-africana.

 A persistência deste fenómeno até uma época tardia mostra também que é necessário desmantelar um mito recorrente, o do domínio europeu sobre África. Esse domínio apenas se concretizou já com o século XX bem entrado. No caso português, por exemplo, as campanhas de pacificação do território guineense apenas se deram por concluídas em 1941. A resistência dos povos autóctones, a fragilidade europeia face a certas doenças, a ineficácia de alguma, pouca, superioridade tecnológica face ao número e ao território, fizeram com que somente na segunda metade do século XIX a colonização europeia tenha efectivamente sido levada a cabo para o interior, para lá dos entrepostos situados na costa e que poucos quilómetros iam para lá dela.

 Ou seja, mesmo que os europeus quisessem não teriam conseguido aniquilar essa pirataria até ao século XIX e não conseguiriam, eles próprios, levar a cabo o tráfico atlântico em larga escala sem a cumplicidade dos poderes locais.

 Também em outras partes da Europa, sobretudo nos Balcãs, os europeus foram sendo escravizados. O Império Otomano, senhor de parte daquela zona durante séculos, não se coibia de capturar jovens destinados ao serviço do Sultão, e não só. O famoso corpo de elite da Sublime Porta era constituído por rapazes balcânicos, cristãos, retirados às famílias e destinados ao serviço do Sultão. Curiosamente não foi aí, no Império Otomano, não foi no mundo árabe, tão brilhante e civilizado segundo alguns eruditos, que se desenvolveu o ambiente que levou à abolição de tão nefanda prática. Foi na Europa que, a partir do século XVIII e, sobretudo XIX, se ergueram vozes exigindo o fim da escravatura. Foram europeus, britânicos, principalmente, mas também portugueses, que patrulharam o Atlântico, combateram os traficantes e morreram às centenas para pôr fim efectivo a esse negócio. E foi um país do Atlântico Sul, um país que hoje é expedito a lançar culpas a Portugal, que manteve a escravatura legal até 1888. Um país chamado Brasil.

 Mas tudo isto está escrito, documentado, traduzido. Tudo isto está ao alcance da sra. Jorge. Basta ler o que escreveu João Pedro Marques, por exemplo, ou Tidiane N’Diaye. Ou Giles Milton, estes dois últimos traduzidos em português. É verdade que o número de títulos que relatam estes fenómenos é bem menor do que o daqueles que demonizam a Europa, mas mesmo assim pode ter-se uma visão bem documentada sobre o fenómeno.

 Portugal levou a cabo o tráfico de escravos? Sim, como tantos outros ao longo da história. Mas Portugal, na sequência do que sucedeu na Europa Ocidental, esteve na linha da frente daqueles que reconheceram o erro e contribuíram para o eliminar. Fizeram-no muito antes dos que hoje passam entre os pingos da chuva e contribuem para a demonização alheia, procurando assim relegar para segundo plano a sua própria história de sombras.

(este texto foi escrito em 30 minutos, com os escassos recursos da minha cabeça. Certamente que a sra. Jorge, espírito muito mais subtil do que o meu, facilmente aprofundaria esta temática, para não voltar a repetir erros e ideias feitas).

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