10 Maio, 2024

Ucrânia e Israel: a Rússia, por deixar de ser soviética, não deixou de ser Rússia

Há um sem-número de conflitos a rodear e a invadir actualmente a Europa. Vem-nos imediatamente à memória a guerra na Ucrânia e agora o que se passa se passa em Israel. Mas poucos nos apercebemos das crises entre a Arménia e o Azerbaijão e entre a Sérvia e o Kosovo apoiado pela Albânia. E quase esquecemos o conflito do Iémen e a guerra civil que se eterniza na Síria. Da situação na África subsaariana só temos vagos ecos. Mas todas estas situações têm um denominador comum: a Federação Russa.

Temos tendência a examinar isoladamente este tipo de acontecimentos. Após a queda do império soviético, desabituámo-nos de pensar a política internacional em termos globais. Trata-se de um engano perigoso. 

Com efeito, a Rússia de Putin, herdeira da URSS, não tem a mesma perspectiva. Os russos nunca verdadeiramente mudaram as suas visões geoestratégica e geopolítica. A anomia e a desorganização que se seguiram à queda do regime comunista foram ultrapassadas com a ajuda das receitas do petróleo e do gás natural, e o novo regime firmou-se e evoluiu no sentido da autocracia. Num país com a tradição histórica, a extensão geográfica e a grande diversidade de povos que a integram, admitamos que seria difícil que um regime verdadeiramente democrático pudesse florescer.

A Rússia de Putin vê o mundo como um enorme tabuleiro, onde possui múltiplas peças herdadas da velha União Soviética e onde o seu desaparecimento como potência hegemónica funciona como um verdadeiro trunfo agregador de simpatias. Putin quer reconstituir o velho império, goza do potencial bélico herdado dos tempos do comunismo e, apesar da abertura da Rússia ao mundo, vê o seu país como vivendo no constante risco de se desintegrar no caso de às tensões internas se somar uma agressão externa. 

A união entre vários povos reforça-se face à existência de um inimigo comum, sobretudo em caso de guerra. O desaparecimento da zona-tampão de países satélites que davam à Rússia uma relativa segurança agravou o medo face à OTAN, vista como agressor potencial. Face a essa situação, houve a tendência para recuperar esses países por meio de todos os tipos de pressão. Mas o que resultou com a Bielorrússia só funcionou temporariamente com a Ucrânia. Foi isso e as crescentes tendências centrípetas internas o que levou a Rússia à chamada “operação militar especial” e à tentativa de subjugar pela força a Ucrânia.

Face ao falhanço inesperado da “blitzkrieg”, a Rússia viu-se envolvida num conflito de longa duração, face a uma Ucrânia fortemente apoiada pelos EUA e pela UE. Na impossibilidade prática de recuar, restava-lhe manter as posições no terreno e procurar neutralizar o potencial logístico do inimigo usando as peças de que dispõe espalhadas no tabuleiro. Por isso, forjou alianças e reforçou a influência nas guerras civis da Síria e do Iémen, autorizou a invasão do Nagorno-Karabakh pelo Azerbaijão, onde as forças russas de manutenção de paz foram meras espectadoras (e o que serviu de aviso à sua aliada Arménia que começava a revelar aspirações europeístas); fomentou o nacionalismo sérvio para reacender a fogueira dos Balcãs; e exportou os seus mercenários Wagner para agitar e manter a pressão em África face ao Ocidente. 

O golpe de mestre terá sido o reacender do conflito israelo-palestiniano. Através dele, consegue forçar as potências ocidentais a repartirem o seu apoio logístico entre a Ucrânia e Israel, e os seus meios militares entre o Báltico, o Mar Negro e o Mediterrâneo. Paralelamente, fomentam a divisão entre os aliados ocidentais e sabotam o apoio das respectivas opiniões públicas. E isto num momento que não podia ser melhor escolhido: as eleições na Eslováquia, que abrem uma brecha na unidade dos países ocidentais e, sobretudo, a paralisação momentânea das instituições democráticas americanas resultante da destituição do presidente da Câmara dos Representantes. 

É importante que a Velha Europa democrática esteja atenta a tudo o que se passa neste tabuleiro de xadrez que é o mundo, e que, na voragem de conquistar a rainha do adversário, não deixe o seu rei vulnerável. É que a Rússia, por deixar de ser soviética, nunca deixou de ser Rússia.

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