“Como missão de investigação das Nações Unidas, nós estamos extremamente preocupados com a situação atual na Venezuela”, ainda que aquilo a que se assiste hoje “em termos de manifestações populares espontâneas e nível da repressão por parte das forças públicas do Estado” seja algo que “infelizmente não é novo”, diz Marta Valiñas, que preside à comissão tripartida criada em 2019 para investigar as violações dos direitos humanos cometidas desde 2014 no país.
Assinalando que o mandato da missão independente de inquérito à qual preside e que opera sob a égide do Conselho de Direitos Humanos da ONU permitiu investigar “aquilo que se passou já nas manifestações de 2014, 2017, 2019, entre outras em menor escala”, incluindo algumas que tiveram lugar no ano passado já “devido à insatisfação de grande parte da população” com o regime de Nicolás Maduro, Marta Valiñas afirma que está a repetir-se “um ‘modus operandi’ que já se viu no passado”.
“Ou seja, [assistimos a] intervenção das forças de segurança públicas, incluindo não só a polícia, que tem um mandato mais direto de manter a ordem pública, mas também da Guarda Nacional Bolivariana, que pertence às Forças Armadas, e, além destas, a participação daquilo que se chamam os ‘colectivos’, que são civis armados, ideologicamente pró-governo atual, pró-Maduro, e que atuam quase como que a ajudar as forças de segurança do Estado”, indica.
“Portanto, o que vemos são níveis de repressão que incluem não só as mortes que já foram registadas, mas também um elevadíssimo número de detenções de manifestantes e várias pessoas feridas. E é isto que nos preocupa: preocupa-nos ver mais uma vez este mesmo modo de atuação”, lamenta a jurista especializada em direitos humanos, particularmente preocupada por a repressão sistemática, incluindo a detenção de ativistas de direitos humanos, acabar por ser “uma estratégia muito eficaz por parte das autoridades para silenciar aqueles que se atrevem a denunciar ou relatar o que lhes aconteceu”.
“Nas nossas investigações, algo que temos notado é que, nos últimos meses, diria mesmo no último ano do nosso trabalho, há uma maior relutância, maior medo por parte das pessoas que sofreram vários tipos de violações aos seus direitos humanos, de falar connosco sobre estes temas. Elas próprias dizem que tal se deve à situação atual e ao facto de se sentirem cada vez mais vigiadas e perseguidas”, aponta, lamentando que tal dificulte o trabalho de organismos que pretendem documentar as violações de direitos humanos, como a missão da ONU à qual preside.
Sublinhando que as “investigações detalhadas” já levadas a cabo no passado pela missão permitiram “concluir que o uso de força pelas forças do Estado em contexto de manifestações tinha sido muitas vezes abusivo, incluindo o uso de força letal”, Marta Valiñas admite que o apelo da missão, reiterado na quarta-feira, no sentido de que as autoridades investiguem e sancionem de forma independente, imparcial e transparente todas as alegações de violações de direitos humanos e possíveis crimes cometidos tem poucas probabilidades de sucesso, atendendo à “falta de independência do sistema de Justiça na Venezuela, que está sujeito a vários tipos de ingerência por parte do executivo”.
“A esperança é reduzida, mas a obrigação está lá. Nós temos de reiterar e também lembrar às autoridades que elas são as primeiras que têm esta obrigação de investigar. Se elas não o fizerem, ou não o fizerem de forma cabal e genuína, há outras possibilidades”, diz então, lembrando que “neste momento está a decorrer uma investigação no Tribunal Penal Internacional sobre crimes cometidos na Venezuela” e “aquilo que aconteça agora poderá vir a ser objeto de investigação por parte do Procurador-Geral do TPI”.
“E há outras possibilidades de justiça fora da Venezuela, de acordo com o princípio da jurisdição universal”, acrescenta, assinalando que decorre por exemplo uma investigação na Argentina “por crimes cometidos precisamente em contexto de manifestações”.
Marta Valiñas diz esperar “profundamente” que “não se chegue ao ponto de uma guerra civil, de mais violência” na Venezuela, mas alerta que “é evidente o desgaste da população e é evidente a revolta”.
“Além do desgaste com a situação que têm vivido nos últimos anos, penso que esta revolta se deve ao facto de terem tentado pela via democrática fazer valer a sua voz e a sua vontade, veem que os obstáculos são imensos, e sentem que realmente as instituições não são confiáveis, não são independentes e, portanto, sentem-se desprotegidos”, afirma.
De acordo com os dados oficiais do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) da Venezuela, o Presidente cessante, Nicolás Maduro, foi reeleito para um terceiro mandato consecutivo, ao obter 51,20% dos votos, contra 44,2% do candidato da oposição Edmundo Gonzalez Urrutia.
A oposição venezuelana reivindica a vitória nas eleições presidenciais de domingo, com 70% dos votos, disse à imprensa María Corina Machado, a líder da oposição, impedida de participar no ato eleitoral, e que se recusa a reconhecer os resultados proclamados pelo CNE.