Pais, filhos e o vazio moral da modernidade

Há semanas que não são apenas uma sucessão de acontecimentos. São um espelho da dor, da solidão e da ausência de valores que atravessam silenciosamente os nossos tempos.
Não é, pois, de estranhar que, na mesma semana em que a APAV divulga dados alarmantes sobre a violência de filhos contra pais e mães — um aumento de 27,1 % face ao período anterior, com mais de 2 813 vítimas apoiadas entre 2022 e 2024 e 5 654 crimes registados, dos quais 82,3 % correspondem a violência doméstica — sejamos confrontados com duas histórias que espelham, de forma dolorosa, essa realidade.
O assassinato da vereadora de Vagos, alegadamente às mãos do próprio filho, e o esfaqueamento do criminologista e professor José Manuel Anes, com a filha como principal suspeita, deixaram o país em choque.
E não é difícil perceber porquê: nada abala tanto a consciência colectiva como um lar que deixa de ser abrigo para se tornar palco de tragédia.
Mais inquietante do que o horror dos factos é a sua recorrência. Pois o que assistimos não é um acaso isolado, mas o reflexo de uma sociedade em erosão moral, onde o sentido de pertença se esbate e o silêncio se tornou a forma mais comum de sofrimento.
Durkheim chamou a este fenómeno “anomia”, o enfraquecimento das normas que garantem coesão e estabilidade à vida social.
Quando a sociedade deixa de transmitir valores e referências, o indivíduo perde a bússola moral. Sem um sentido comum, cada um age segundo o impulso, o medo ou o desespero. E é nesse vazio normativo que germinam os comportamentos extremos, que rompem com o mais elementar vínculo humano: o amor entre pais e filhos.
A moral colectiva, que outrora orientava as condutas, foi substituída por uma sucessão de opiniões voláteis e emoções momentâneas. Tudo é relativo, tudo é discutível, tudo é permitido. O resultado é um mundo onde as instituições se deslaçam, as famílias enfraquecem e a comunidade desaparece.
Max Weber descreveu este processo como o “desencantamento do mundo”.
Com o avanço da racionalidade moderna, tudo se tornou mensurável, previsível, calculável. A técnica substituiu a fé, o utilitarismo substituiu o ideal, e o “como” passou a importar mais do que o “porquê”.
Vivemos aprisionados naquilo que Weber chamou de “jaula de ferro da racionalidade”, um mundo cada vez mais eficiente, mas também mais frio e desprovido de sentido. E quando o sentido se perde, o ser humano torna-se refém do vazio.
Esse vazio é hoje amplificado pela era digital.
As redes sociais que prometiam aproximar-nos, acabaram por criar novas formas de solidão. Vivemos permanentemente ligados, mas raramente presentes. O ecrã substituiu o olhar, o “like” substituiu o diálogo, e a velocidade da desinformação deixou pouco espaço para a escuta e a empatia.
O mundo digital, ao dissolver fronteiras e acelerar o tempo, agravou o processo de desumanização que Durkheim e Weber apenas puderam antever. É certo que a tecnologia trouxe progresso, mas também trouxe uma forma nova de alienação, onde os vínculos são difusos, as emoções são descartáveis e o “outro” é reduzido a uma imagem ou a uma opinião.
Zygmunt Bauman baptizou de modernidade líquida
Uma época em que nada dura, em que tudo se transforma antes de criar raízes. Os laços humanos tornaram-se voláteis: o amor, a amizade, a solidariedade parecem ter perdido consistência. Amamos o imediato, educamos com pressa e vivemos à superfície.
Numa sociedade líquida, as pessoas tornam-se produtos emocionais: consumidas enquanto proporcionam conforto e descartadas quando exigem esforço. E nessa lógica, o “outro” deixa de ser um “tu” para se tornar apenas um “objecto de circunstância”.
Bauman dizia que a fragilidade e quebra dos laços humanos é o preço que pagamos pela liberdade de escolha. Mas talvez o preço esteja a tornar-se demasiado alto.
O que está em causa já não é apenas a coesão das famílias, é o próprio tecido moral da nossa sociedade. Quando o afecto se dissolve em conveniência e a empatia em distracção, o resultado é esta sucessão de tragédias que nos deixam sem atónicos e sem chão.
Três olhares diferentes sobre um mesmo aviso: uma sociedade que perde a sua alma acaba inevitavelmente por se desintegrar.
As tragédias desta semana não são, por isso, simples factos criminais.
São o retrato de um tempo em que o progresso avança, mas a humanidade recua.
Em que vivemos rodeados de informação, mas sedentos de sabedoria.
Em que estamos constantemente conectados, mas inevitavelmente sozinhos.
É urgente devolver densidade moral à vida em comunidade. Porque a liberdade sem valores degenera em caos, e o progresso sem ética transforma-se em aparência: brilhante por fora, mas vazio por dentro.

Os partidos políticos têm aqui uma responsabilidade inadiável.
Temos que trazer para o debate público os temas que verdadeiramente estruturam a sociedade (a educação, a família, a ética, a coesão e o sentido de comunidade).
Não podemos continuar a reduzir a acção política a slogans, guerrilhas partidárias e estratégias eleitorais de curto prazo. A política deve voltar a ser um espaço de serviço, e não de cálculo; um lugar de construção, e não de ruído.
Precisamos de reaprender a falar sobre responsabilidade e de reconstruir uma política com propósito, uma política que volte a educar, a inspirar e a reconciliar. Uma política que recupere a linguagem dos valores e dos deveres, e que volte a colocar a ética acima da táctica. Porque, no fim, é disso que se trata: devolver à vida pública a sua dimensão moral.
Durkheim chamou-lhe coesão.
Weber chamou-lhe ética.
Bauman chamou-lhe vínculo.
Eu chamo-lhe humanidade.

E é exactamente isso que estamos a perder.
As tragédias familiares desta semana, em Vagos e em Lisboa, representam mais do que simples notícias. São o reflexo de uma sociedade em erosão moral, onde a solidão, o digital e a perda de valores caminham de mãos dadas num tempo cada vez mais desumanizado onde o mal abre inevitavelmente espaço ao impensável.
O verdadeiro desafio do nosso tempo não é, por isso, tecnológico — é espiritual.
Não passa por criar mais mecanismos de controlo, mas por reconstruir laços de confiança.
Não passa por gritar mais alto, mas por saber escutar melhor.
Porque sem valores, não há comunidade.
Sem comunidade, não há humanidade.
E sem humanidade, o futuro, por mais digital, veloz e moderno que nos possa parecer, será apenas um deserto frio, estéril e sem alma.

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