Mentiras de Abril

Em discurso proferido na sala do Senado da Assembleia da República a 24 de Janeiro deste ano de 2024, André Ventura, Presidente do Chega, afirmou que a 10 de Março, dia das mais recentes, e antecipadas, eleições legislativas nacionais, se deveria «fazer da República Portuguesa uma república digna para os portugueses» . Porém, tal seria difícil porque ela nunca teve uma autêntica e incontestável dignidade. 

Recorde-se a História. Tal como aconteceria na Rússia sete anos depois, no nosso país a República foi instaurada por uma revolução em 1910 enquanto ditadura de um partido político que era minoritário na Monarquia, e representou o culminar de um crescente movimento insurreccionista que incluiu em 1908 o assassinato de dois membros da família real – o então Chefe de Estado e o seu sucessor. Caracterizada por constante instabilidade governativa, a Primeira República ficou marcada pela censura e pela violência contra a oposição, algo que viria igualmente a marcar a Segunda, iniciada em 1926. Os sistemas políticos de ambas nunca foram ratificados por todos os potenciais (maiores de idade) eleitores, tendo aliás os protagonistas do 5 de Outubro feito aprovar uma lei que proíbia explicitamente as mulheres de votarem.

Depois de 25 de Abril de 1974 foi, finalmente, implementado o sufrágio universal em Portugal. No entanto, a Terceira República é, tal como as suas duas antecessoras, ilegítima porque a Constituição de 1976 – que mantém o socialismo como objectivo e a «forma republicana de governo» obrigatória – não foi votada e aprovada em referendo, ao contrário do que aconteceu em Espanha após a morte de Francisco Franco e a ascensão ao trono de Juan Carlos. No nosso país estava dado o «mote» para o que seria, nas décadas seguintes, um cenário recorrente: a tomada de decisões fulcrais, até estratégicas, para a nação sem a realização de consultas populares prévias; meio século decorreu em que se desrespeitou constantemente a vontade dos cidadãos, que nem sequer podem escolher directamente, em círculos uninominais, os seus representantes, os deputados ao parlamento nacional, continuando restringidos aos nomes que as lideranças partidárias impõem. Será que se pode mesmo dizer que o povo é quem mais ordena?

A revolta militar de há 50 anos não foi realmente uma revolução, nem foi «sem sangue» porque a PIDE matou cinco pessoas. O denominado «Processo Revolucionário em Curso» subsequente prolongou-se até 25 de Novembro de 1975, período durante o qual os confrontos ideológicos e as injustiças sectárias se multiplicaram, e com «saneamentos» (despedimentos sumários), ocupações e nacionalizações a debilitarem gravemente a economia. Entretanto, e pior, a apressada incompetência – e quiçá traição – dos novos (co)mandantes políticos e militares causou nas ex-colónias em África desastrosos processos de descolonização de que resultaram, em todas as cinco, regimes de partido único, e em duas – Angola e Moçambique – ainda longas guerras civis que provocaram muitos milhares de mortos. A Terceira República em nada ficou a dever às suas duas antecessoras em termos de destruição e de sofrimento que originou; na verdade, excedeu-as largamente. Antes, a Monarquia Constitucional não levara Portugal para qualquer conflito militar; já a Primeira República levou-nos para a Primeira Guerra Mundial e a Segunda para a Guerra Colonial. Quantos são os que hoje ignoram os factos acima referidos? As mentiras de Abril, e de outros meses, também o podem ser por omissão. 

A 25 do 4 de 1974 eu tinha 9 anos de idade, completados nove dias antes. Fiquei surpreendido por ter saído da escola mais cedo e, ao chegar a casa, por encontrar o meu pai, que não fora para Lisboa trabalhar, a ouvir atentamente o rádio. Todavia, não demorei a duvidar da minha impressão inicial de que uma grande mudança havia ocorrido. Interroguei-me, algo ingenuamente: porque é que, se isto é uma revolução, a bandeira e o hino continuam a ser os mesmos? Posteriormente aprendi e compreendi: porque o regime continuou a ser republicano. Mais de 100 anos passaram e o fundamental mantém-se: o crime – de autêntica lesa-majestade – sem castigo, o «pecado original» pelo qual não se pediu perdão, de a nossa vivência colectiva estar construída sobre os cadáveres de um pai e do seu filho, abatidos a tiro numa tarde de Fevereiro.               

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