Tarifas, Trump e o regresso da soberania económica

Quando Donald Trump, impôs tarifas à entrada de produtos estrangeiros, o mundo liberal – sobretudo europeu – reagiu com o habitual tom de escândalo moral

É uma das lições mais antigas dos manuais de Economia — talvez escondida entre os gráficos de David Ricardo e as promessas de Adam Smith — que nenhum país pode viver indefinidamente com um défice comercial crescente. As importações, mais cedo ou mais tarde, têm de ser compensadas pelas exportações. Caso contrário, o desequilíbrio torna-se crónico, e a bancarrota uma inevitabilidade mascarada de prosperidade.

Quando Donald Trump impôs tarifas à entrada de produtos estrangeiros, o mundo liberal — sobretudo europeu — reagiu com o habitual tom de escândalo moral. Chamaram-lhe proteccionista, populista, ignorante da ortodoxia económica. Curiosamente, muitos desses críticos representam blocos políticos que há décadas impõem barreiras muito superiores aos produtos norte-americanos. A Europa, por exemplo, tributa veículos dos EUA com taxas que chegam aos 10%, enquanto os carros europeus entram no mercado norte-americano com um imposto simbólico de 2%. O discurso da livre concorrência, ao que parece, é bonito desde que o desequilíbrio jogue a nosso favor.

Trump, com a subtileza de um martelo, percebeu o essencial: os Estados Unidos transformaram-se num enorme mercado de consumo, aberto e apetecível, mas com cada vez menos capacidade produtiva própria. A globalização, nas mãos das grandes multinacionais, deslocalizou milhões de empregos para a Ásia, sobretudo para a China, transformando antigas cidades industriais em fantasmas urbanos. Perante este cenário, Trump fez o impensável: levantou a voz. Renegociou o NAFTA, confrontou a China e colocou os aliados europeus sob pressão. E conseguiu algo que nenhum antecessor recente tinha conseguido — forçou todos os principais parceiros comerciais a sentarem-se à mesa das negociações.

A crítica mais comum, claro, é que tarifas distorcem os mercados. É verdade. Mas apenas no plano da teoria pura. No mundo real, onde fábricas fecham e comunidades colapsam, as tarifas são menos um dogma e mais um instrumento — imperfeito, mas necessário. Trump jogou uma cartada arriscada: melhor algum desconforto agora do que um colapso estrutural irreversível.

Mas os obstáculos não são apenas externos. Internamente, Trump depara-se com a resistência feroz de lobbies poderosos — entre os quais o complexo militar-industrial americano, onde a paz é um mau negócio e a guerra um ciclo económico. Do Iraque à Faixa de Gaza, há sempre quem beneficie do conflito. Reduzir o orçamento de defesa ou desmilitarizar a política externa dos EUA é, para muitos, uma heresia.

Ainda assim, Trump ousou exigir mais dos parceiros da NATO, propondo aumentos nas contribuições nacionais — de 2% para 3,5% do PIB. E, novamente, os que mais protestam são os mesmos que há décadas se escudam na proteção americana sem pagar o devido preço.

Paralelamente, outro sismo silencioso abala os alicerces da ordem monetária internacional. Desde que Nixon, em 1971, rompeu o vínculo do dólar ao ouro — para financiar a guerra do Vietname — os EUA passaram a sustentar a sua moeda com confiança… e com petróleo. Surgiram os petrodólares, e o dólar tornou-se a divisa hegemónica. Mas agora, os países do BRICS (já bem mais do que cinco) preparam uma alternativa. Falam de uma moeda comum, sustentada por matérias-primas e acordos bilaterais, afastando-se lentamente do dólar. Se tiverem sucesso, o impacto será profundo — não apenas para os EUA, mas para todo o Ocidente.

Durante décadas, os Estados Unidos alimentaram o mundo com dólares, endividaram-se com apetite e ofereceram o seu mercado como prado verde para as exportações alheias. Os parceiros sorriram, venderam, acumularam excedentes, e, como quem canta e não chora, foram enterrando a indústria americana sob toneladas de aço, automóveis e tecnologia made in elsewhere. Donald Trump, com a subtileza de um bulldozer em Versailles, limitou-se a perguntar: quem está a pagar esta festa?

Donald Trump, com a subtileza de um bulldozer em Versailles, limitou-se a perguntar: quem está a pagar esta festa?

Ao contrário do que muitos repetiram em uníssono — com grande sobriedade e um certo pavor moral —, Trump não quis “destruir o comércio global”. Quis apenas reequilibrá-lo. E, na verdade, qualquer estudante do primeiro ano de Economia aprende que a balança comercial de um país não pode sangrar indefinidamente sem consequências. O défice externo dos EUA é estrutural, crónico, e um dia alguém teria de lhe pôr um travão. Trump decidiu ser esse alguém. Em vez de discursos melífluos em Davos, preferiu tarifas. E causou escândalo.

Porquê tanto alarme? Porque o mundo habituou-se a tratar os EUA como um cliente garantido, e ninguém gosta de perder um cliente que paga (mesmo quando paga com dinheiro que ainda não tem). Durante décadas, os produtos europeus, asiáticos e latino-americanos entraram nos EUA quase sem obstáculos, enquanto os produtos americanos enfrentavam barreiras alfandegárias em nome de tudo: desde a segurança alimentar à proteção cultural. Trump rasgou o véu da hipocrisia com uma frase simples: ou há comércio livre para todos, ou não há para ninguém.

É neste contexto que surgem os BRICS — esse acrónimo quase poético para a nova esperança multipolar — com uma ambição clara: destronar o dólar como moeda dominante e criar uma alternativa respaldada, diz-se, em ouro, em recursos, ou, quem sabe, na fé dos seus próprios mercados. Mas sejamos claros: uma substituição do dólar no sistema internacional não seria uma vitória de ninguém. Seria um terramoto. Nem os próprios BRICS escapariam ilesos. A interdependência financeira do mundo é hoje mais apertada do que nunca — um balão que, se rebentar, não escolhe em quem respinga.

A história, aliás, não se conta sem um parágrafo dedicado a 1971. Foi nesse ano que Nixon, com o Vietname a drenar recursos e a paciência do eleitorado, rompeu com o sistema de Bretton Woods e desligou o dólar do ouro. A partir daí, o dólar passou a flutuar como uma jangada — sustentado não por metal precioso, mas pela confiança no próprio império americano. E a jangada flutuou. A força do mercado interno, a solidez das instituições (até prova em contrário) e, não menos importante, o pacto implícito com os produtores de petróleo do Médio Oriente — que continuaram a vender crude em dólares — mantiveram a moeda americana no centro do sistema.

Mas os tempos mudaram. A China tornou-se a oficina do mundo, com fábricas, portos e ambições imperiais. O Ocidente, entre crises de identidade e overdoses de regulamentação, perdeu ritmo. E, num mundo em transformação, Trump leu o diagnóstico à sua maneira: “A América está a ser explorada”. E quem ousar rir-se da simplicidade desta frase, que reveja os números do défice comercial, o declínio da indústria nacional e a fuga de capitais.

É verdade que Trump tem um estilo que dificilmente entrará nos manuais de diplomacia. Por vezes, parece fazer política externa pelo Twitter e geoestratégia à mesa de jantar. Mas também é verdade que, sob a sua presidência, os EUA conseguiram renegociar acordos comerciais, forçaram aliados europeus a reverem os seus orçamentos de defesa na NATO, e atraíram de volta investimentos que pareciam perdidos para sempre na China ou no Sudeste Asiático.

Claro que não lhe faltam adversários — muitos deles em casa. A elite tecnocrática de Washington, os lobbies do complexo militar-industrial, os especuladores da dívida eterna… todos têm razões para preferir o status quo. Afinal, como dizia Upton Sinclair, “é difícil fazer alguém compreender uma coisa quando o salário dessa pessoa depende de ela não a compreender”.

Entretanto, os BRICS continuam a fazer juras de independência monetária, a Europa debate-se com guerras que não escolheu, mas às quais não consegue fugir, e a América caminha — com passos ora seguros, ora hesitantes. Trump, com todas as suas contradições, pode muito bem ser o catalisador de um novo ciclo económico, talvez mais doloroso a curto prazo, mas mais sustentável a longo prazo.

O Ocidente tem, pela frente, um dilema que não é apenas económico, mas civilizacional: continuar a viver acima das suas possibilidades ou enfrentar a inevitabilidade de um reequilíbrio. Com menos euforia, mais realismo e talvez — só talvez — com um pouco da ironia dos velhos tempos, quando sabíamos rir dos nossos próprios impérios.

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