Há três ideias simples que qualquer cidadão reconhece: sem acesso não há Serviço Nacional de saúde (SNS); sem equipamentos, profissionais e dados fiáveis não há gestão; sem resultados medidos, os anúncios não passam de barulho. O Orçamento de Estado para 2026 (OE-2026) não afronta estas verdades: contorna-as. Promete estabilidade, mas faz cortes onde dói, empurra decisões para reservas e grupos de trabalho e confia que a realidade ceda à retórica. Não cedeu em 2024. Não cedeu em 2025. E não cederá em 2026.
O ponto de partida é conhecido. Em menos de dois anos de tutela, acumulam-se episódios que ilustram um padrão de risco e de incerteza: fechos rotativos de urgências obstétricas e pediátricas, falhas nos Tempos Máximos de Resposta Garantidos (TMRG), partos fora de contexto hospitalar e um pré-hospitalar sob pressão. Isto não é azar, é sistema. Quando o sistema falha a montante, o azar aparece a jusante, onde a vida é frágil e cada minuto conta.
Os dados confirmam esta leitura. A Aquisição de Bens e Serviços (ABS) cai 10,1% face a 2025; o Governo alega efeito de base e “reserva orçamental” que migrará despesa, mas o Conselho das Finanças Públicas não encontra fundamentação suficiente para a redução projetada do consumo intermédio. A despesa direta das famílias (out-of-pocket, OOP) ronda 29–30% da despesa corrente em saúde, acima da média da OCDE. A mortalidade infantil foi de 3,0‰ em 2024, acima de 2023, lembrando que ganhos civilizacionais exigem vigilância permanente. O Prazo Médio de Pagamento (PMP) continua longe de ser regularmente cumprido a 60 dias, persistem dívidas a fornecedores e assimetrias entre Unidades Locais de Saúde (ULS). Na Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (RNCCI), encerramentos e cancelamentos de convenções subtraíram centenas de camas, com várias notícias a apontarem mais de uma centena nos últimos três meses. E a Linha SNS 24 e os Serviços Partilhados do Ministério da saúde (SPMS) enfrentaram picos de procura com perdas de chamadas e avarias que interrompem atividade clínica, e triagens sob forte pressão. Estes factos são a distância entre uma promessa e uma consulta, entre um despacho e um parto seguro, entre um slide e um medicamento disponível. Quando o OE-2026 corta na ABS, abre um risco direto sobre consumos clínicos: Meios Complementares de Diagnóstico e Terapêutica (MCDT), dispositivos médicos, medicamentos e manutenção; precisamente quando se exige mais produção às equipas.
O Orçamento de Estado para 2026 falha no essencial por quatro razões. Primeiro, porque confunde racionalizar com racionar: o corte na ABS não vem acompanhado de um plano de compras clínicas com catálogos dinâmicos, auditorias de preços por ULS e metas de poupança mensuráveis sem perda de atividade; é apenas uma linha descendente num quadro. Poupança só é virtude quando é inteligente, comparada e auditada; caso contrário, transforma-se em faltas, adiamentos e listas de espera.
Segundo, porque confunde estabilidade com inércia: reaparece a narrativa das “grandes reformas estruturais”, mas os problemas que ferem o doente são quotidianos, tempos de resposta em consulta e cirurgia, telemática que cai, transportes que não chegam e equipas incompletas; a estabilidade que conta é o doente entrar, ser atendido e sair com soluções, o resto é gestão de expectativas.
Terceiro, porque desloca a responsabilidade para as famílias: com a despesa direta das famílias elevada, cada atraso no público empurra para o bolso do cidadão a compra privada da mesma resposta, para quem pode, e condena quem não pode a esperar, agravando desigualdades e territorializando a injustiça.
Quarto, porque falha na execução: o PRR trouxe investimento, mas a tradução em camas, equipamentos e profissionais foi intermitente; as metas contam no papel, porém o que conta para o doente são a porta aberta, a cama contratada, a equipa escalada, o sistema a funcionar.
Há, contudo, um pacote mínimo capaz de recentrar o doente. Sempre que um TMRG seja ultrapassado, deve ativar-se um vale de acesso: primeiro setor social e convencionado, depois setor privado contratualizado, com preço-teto por linha de produção, auditoria de qualidade e segurança e relatório mensal por especialidade.
O vale não privatiza o SNS: responsabiliza a gestão por entregar cuidados a “tempo e horas”, usando toda a capacidade disponível sob controlo de preço e qualidade.
O PMP deve cumprir-se a 60 dias, com publicação por entidade em plataforma de transparência, plano obrigatório de regularização para incumpridores, incentivos a quem cumpre e sanções graduais para incumprimento reiterado; pagar a tempo não é capricho, é condição essencial para terapêuticas contínuas, manutenção de equipamentos e prevenção de ruturas.
As compras clínicas precisam de catálogo dinâmico por grupos homogéneos, benchmarking europeu, contratos-quadro com partilha de ganhos e auditorias independentes dos preços por ULS; cada euro poupado por comprar melhor é um euro que financia mais consultas, mais cirurgias, mais MCDT e mais equipa, sem cortar onde dói.
O PRR deve contar no terreno, com reorçamentação automática para projetos com execução comprovada, cativações zero nos cuidados de saúde primários, na RNCCI e no digital clínico, e marcos verificáveis, nomeadamente, camas ativas, consultas abertas, equipamentos a produzir, interoperabilidade confirmada; sem marcos no terreno, não há celebração no papel. A RNCCI precisa de contratualização plurianual com atualização automática pelos custos reais (salário mínimo e inflação), pagamentos a 30 dias e um boletim mensal público com camas contratualizadas, em obra, ativas e encerradas por região; cada alta hospitalar sem retaguarda social é uma porta de urgência que não devia abrir, e abriu.
As objeções previstas têm resposta simples. Dizer que “há reserva orçamental para a ABS” não trata doentes: uma reserva só evita racionamento quando existe política de compras clínicas com execução e auditoria; sem catálogo, preço-teto e divulgação, a reserva é promessa, não plano.
Argumentar que “vales criam dependência do privado” ignora que o vale é último recurso, prioriza o setor social e convencionado e contratualiza preço e qualidade; o que cria dependência é falhar o acesso e empurrar o cidadão para o pagamento direto.
Afirmar que “não há recursos humanos” descreve parte do problema, mas não o resolve: reduzir listas de espera, estabilizar pagamentos, evitar ruturas e manter equipamentos operacionais melhora condições de trabalho e ajuda a fixar profissionais, porque permite cuidar com dignidade.
Responsabilidade política, neste contexto, não é trocar comunicados com o Conselho das Finanças Públicas; é assumir metas mensuráveis e prestar contas. A Ministra da Saúde deve garantir que os tempos de espera para cirurgia e consulta descem pelo menos 15% nas dez especialidades mais críticas; que o PMP é ≤60 dias em, pelo menos, 80% das entidades; que não há ruturas relevantes de MCDT, dispositivos médicos e medicamentos essenciais; e que existe reforço de camas na RNCCI. Se estas metas falharem sem explicação aceitável, não há estabilidade a proteger: há mudança a cumprir.
O OE-2026 pode e deve ser corrigido na especialidade: ABS protegida por compras clínicas auditadas; PMP com incentivos e sanções; vales automáticos após TMRG; PRR com marcos no terreno; RNCCI com pagamentos justos e previsíveis; dados fiáveis e públicos.
É isso que os portugueses esperam: que as palavras se tornem portas abertas, camas ativas, equipas completas e cuidados a tempo. Sem acesso não há SNS. E sem execução não há acesso.