“Já existe alguma deslocalização da produção, mas é parcial. Se for total, ou em 80%, os consumidores vão sofrer imenso”, admitiu Tiago Mateus, responsável pelas aquisições na China da Joinco, fornecedora do grupo retalhista Jerónimo Martins.
Tiago Mateus é um de dezenas de milhares de importadores estrangeiros que acorreram esta semana à Feira de Cantão, onde duas vezes por ano fabricantes chineses de produtos não-alimentares expõem milhões de produtos, desde bicicletas a utensílios de cozinha, na capital de Guangdong, a próspera província do sul da China, conhecida como “fábrica do mundo”.
A primeira edição remonta a 1957, mas foi só nas últimas décadas que a Feira de Cantão se converteu num dos maiores eventos comerciais do mundo, à medida que a China assumiu um papel central nas cadeias de distribuição globais.
As perturbações causadas pela covid-19 e pela invasão russa da Ucrânia suscitaram, porém, um debate nos Estados Unidos e na Europa sobre a necessidade de diversificar relações comerciais.
“Vários países perceberam que existe uma forte dependência e que, acontecendo alguma coisa na China, todos sofrem”, descreveu Tiago Mateus. “Mas a finalidade de uma empresa privada é o lucro”, ressalvou o português, destacando as vantagens competitivas que colocam o país “a milhas” da concorrência.
Steve Hoffman, presidente executivo da Founders Space, uma das principais incubadoras e aceleradoras de ‘startups’ do mundo, com sede em São Francisco, na Califórnia, concordou: “Em termos económicos uma fragmentação nos laços comerciais com a China não faz sentido nenhum”.
Em entrevista à Lusa, Hoffman admitiu que o executivo norte-americano “está sob pressão das suas empresas – Microsoft, Apple ou Intel -, que não querem reduzir a sua exposição à China”. Em causa, estão condições “muito difíceis de replicar” em outras partes do mundo, apontou.
A China possui a rede ferroviária de alta velocidade mais extensa do mundo, sete dos 10 maiores portos do planeta, abundante mão-de-obra especializada, um controlo vertical sobre as cadeias de fornecimento, desde o acesso facilitado a matérias-primas, ao fabrico de componentes e à montagem final, e capacidade para produzir em grande escala.
Tem também termos de pagamento “muito atraentes” para clientes estrangeiros e centros de arbitragem “eficazes” em caso de disputa são outras das vantagens apontadas.
“Seriam precisas várias décadas para replicar este modelo em outro lugar”, admitiu Mateus.
Com cerca de 100 milhões de habitantes e uma localização costeira, o Vietname posicionou-se como favorito para absorver indústria de mão-de-obra intensiva, incluindo vestuário, móveis ou produtos eletrónicos.
Denis Almeida, importador brasileiro de calçado que deixou Cantão em 2019 para se instalar na cidade de Ho Chi Minh, no sul do Vietname, explicou à Lusa, no entanto, que a escala e recursos laborais do país do sudeste asiático ficam “muito aquém” dos da China.
Em causa estão cadeias de fornecimento menos maduras e o aumento repentino da procura por mão-de-obra, explicou.
“A força de trabalho no Vietname é, embora grande, ainda limitada, e uma empresa que possa oferecer um salário mais elevado absorve os trabalhadores”, frisou.
A China detém ainda um mercado consumidor composto por 1,4 mil milhões de pessoas: o país é, assim, em simultâneo, o maior produtor e principal mercado para os iPhones da norte-americana Apple, por exemplo. Várias outras marcas internacionais enfrentam igual dependência.
No átrio do Hilton Beijing Capital Airport, um amplo espaço coberto em mármore, com colunas e painéis de madeira ornamentados em estilo chinês, Steve Hoffman, que começou a visitar a China em 2015, alertou ainda para os riscos políticos de um ‘divórcio’ com a China.
“Quando a interdependência é total, ninguém quer agitar as águas”, descreveu. “As tensões geopolíticas vão sempre existir”, notou. “Mas, se a tua economia depende dos outros, vai existir sempre muita pressão para não exacerbares essas tensões”.