Embora vivamos num regime democrático, existem espaços do poder público onde a democracia parece não ter pleno alcance. As autarquias, criadas para gerir de forma autónoma os serviços públicos e responder de perto às necessidades das populações, acabam muitas vezes por se transformar em verdadeiras ilhas de poder, resistentes à renovação, à crítica e à transparência. É neste contexto que se pode falar, metaforicamente, de uma “ditadura perpetuada pelas autarquias”: um sistema onde as decisões são tomadas por poucos, quase sempre os mesmos, sem o devido escrutínio ou participação dos cidadãos.
O problema não reside na existência das autarquias, mas na forma como muitas delas operam. Criadas com o propósito de garantir eficiência e estabilidade administrativa, acabam frequentemente blindadas de qualquer fiscalização efetiva.
Presidentes e vereadores perpetuam-se no poder durante mandatos sucessivos, consolidando redes de influência e dependência que dificultam qualquer tentativa de mudança. Este poder concentrado e pouco transparente gera um ambiente propício ao compadrio, ao clientelismo e a práticas que roçam o autoritarismo burocrático.
Mais grave ainda são as atitudes vingativas e vergonhosas que, em certos casos, o poder local adota contra quem se atreve a levantar a voz. Qualquer cidadão, funcionário ou empresário que denuncie irregularidades ou conteste decisões injustas pode tornar-se alvo de perseguição. Multiplicam-se então as inspeções súbitas da ASAE, fiscalizações desproporcionadas, cortes de apoios, atrasos intencionais em licenças ou autorizações, e até tentativas de difamação pública. Em vez de se promover a legalidade e o interesse comum, utiliza-se o aparelho administrativo como arma de retaliação. É a vingança política mascarada de procedimento legal.
Estas práticas corroem a confiança dos cidadãos nas instituições e criam um clima de medo e resignação. Onde há medo, não há liberdade. E sem liberdade, a democracia local transforma-se numa mera aparência uma encenação de poder participativo que, na verdade, serve apenas para manter o controlo de uns poucos sobre o destino de muitos.
É, por isso, urgente repensar o funcionamento das autarquias. A autonomia administrativa não pode, de forma alguma, confundir-se com soberania absoluta. É necessário reforçar os mecanismos de fiscalização independente, promover uma verdadeira transparência nos processos de decisão e proteger aqueles que têm a coragem de denunciar abusos. Caso contrário, continuaremos a viver sob a sombra de uma ditadura silenciosa, disfarçada de democracia local uma ditadura feita não de armas e censura, mas de vinganças, burocracia e medo.