“Nós estamos a ser invadidos por legislação da União Europeia de uma forma absolutamente passiva, porque não há o mínimo de discussão no espaço público”, afirmou à Lusa o professor de direitos fundamentais da Universidade Católica, referindo-se, em particular, à regulação do espaço digital, desde as normas para a Inteligência Artificial como a transferência de informações pessoais.
“Nós deveríamos europeizar as eleições legislativas”, procurando temas mais transversais, que “vão mexer com as pessoas”, insistiu o jurista, autor do recente livro “Direitos Fundamentais para a Universo Digital”, da Fundação Francisco Manuel dos Santos.
Para Jorge Pereira da Silva, “há um problema sério que é a infoexclusão”, não apenas quanto ao uso das tecnologias mas também ao impacto que esse uso tem.
Essa infoexclusão é evidente entre os mais velhos, mas “curiosamente, a geração mais nova, que poderia estar muito alerta para estas causas, não está” atenta ao tema.
“Os meus alunos são utilizadores acríticos de muitas destas plataformas”, exemplificou, salientando que a autoconsciência sobre o uso das tecnologias digitais é algo que pode fraturar a sociedade.
Assiste-se a “uma divisão entre os que beneficiam e participam [na sociedade digital] e aqueles que estão excluídos”, mas “nós não nos podemos dar ao luxo de ter mais uma clivagem social dessas”, alertou o investigador.
“Grande parte do descontentamento nos Estados Unidos, que depois degenerou em populismo, tem a ver com uma disrupção económica que deixou muitos excluídos” e hoje “não nos podemos dar ao luxo de ter um novo grupo de excluídos”, que serão os que ficam à margem da inclusão digital.
Para tal, é necessário “investir em literacia digital, mas é preciso também que as empresas tenham alguma moderação na sua própria transformação digital”, porque, se a fizerem de modo demasiado rápido, “irão deixar de fora pessoas que vão ter mais dificuldade em adaptar-se”.
Para a literacia digital, o investigador sugere soluções de “formação ao longo da vida”, até enquadradas no contexto profissionais.
Sobre Portugal, “não consigo ser muito otimista aí porque nós estamos em plena campanha eleitoral e neste momento há duas grandes questões que estão a ser decididas na União Europeia” – a regulação da economia digital e o Green Deal Europeu – e aqui “não se discute publicamente”.
“Podem dizer que quando vierem as eleições europeias poderíamos discutir isto, mas nós já sabemos que vai haver a nacionalização das eleições europeias”, com temas domésticos, salientou.
Para Pereira da Silva, o mundo entrou no ecossistema ‘online’ sem se dar conta e de forma acrítica: “Não nos demos conta em larga medida da dimensão da transformação que tem hoje o universo digital”.
A internet, nos seus primórdios, tinha uma “mentalidade americana e libertária de não regulação” e “não nos apercebemos, de facto, da necessidade de regulação por parte dos poderes públicos ao nível nacional e, sobretudo, ao nível transnacional” num território sem fronteiras.
Atualmente, existem três grandes polos digitais: os Estados Unidos – com uma “lógica de liberdade, não regulação e liberdade de expressão praticamente sem limites” – a China – com uma “lógica imperial em que a economia digital e a inovação é colocada ao serviço do Estado” – e a Europa – que “assenta na ideia de que este universo precisa de regulação para garantir aos cidadãos um conjunto de direitos e é começar pela proteção dos seus dados pessoais”.
“O modelo europeu é dos três, aquele que é mais fiel à tradição constitucional, à defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos e, portanto, afirma claramente que os dados pessoais não são nem do Estado nem das plataformas digitais”, explica Jorge Pereira da Silva.
Por isso, o “desenvolvimento da inteligência artificial a tem que ser feito segundo parâmetros que garantam a preservação da dignidade da pessoa humana”, acima da sua utilidade para as empresas ou para os estados.
A economia digital “é dominada por empresas americanas, no bom espírito de Silicon Valley”, mas “não creio que é por causa da regulação, ou falta dela”, que os Estados Unidos estão à frente da Europa na criação de marcas, considerou o investigador.
Por outro lado, o padrão regulatório da Europa faz escola noutros países, como é o exemplo do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) que tem sido replicado noutros locais.
“O nível de regulação tem que ser diferente, consoante a dimensão das empresas” e, nem sempre, as start-ups ou organizações mais pequenas conseguem cumprir os requisitos e, para tal, existe o regulamento dos serviços digitais europeus, que impõe obrigações adequadas a cada empresa.
“Quem se queixa do excesso de regulação são as grandes plataformas que têm condições para suportar esses custos”, recorda Pereira da Silva.