Re(a)ver a História

Foi há dez anos: a 16 de Dezembro de 2015 assinalaram-se os 500 anos da morte de Afonso de Albuquerque, e foi nessa data que teve início, na Biblioteca Nacional de Portugal, o colóquio «Afonso de Albuquerque, 500 Anos – Memória e Materialidade», que teve continuidade e término no dia seguinte na Sociedade Histórica da Independência de Portugal; a 18 de Dezembro abriu no Arquivo Nacional Torre do Tombo uma mostra documental (com os originais de três cartas escritas pelo então Vice-Rei da Índia ao Rei D. Manuel I) em complemento ao colóquio e que se prolongou até 23 de Janeiro de 2016; o Movimento Internacional Lusófono, do qual eu já era associado e membro do respectivo Conselho Consultivo, foi a entidade que liderou a organização da evocação desta efeméride, que resultou de uma ideia e consequente proposta de minha autoria. Igualmente naquele dia 16 e no auditório da BNP, no final do primeiro dia do colóquio, decorreu a apresentação de «Q», o meu primeiro livro de poesia, que agrega mais de 60 poemas, elaborados ao longo de um período de mais de 35 anos, e que têm como temas comuns, ou referências últimas, Portugal e os portugueses, os países e os povos da Lusofonia, as suas figuras, factos e lendas.

Há uma década nem o Estado português em geral nem qualquer uma das várias entidades e instituições naquele incluídas em particular consideraram relevante lembrar e celebrar oficialmente aquele que foi o maior herói militar da História deste país e um dos maiores da História do Mundo. Aquele meu conterrâneo, que também ficou conhecido como «César do Oriente», o «Grande», «Leão dos Mares», «Marte Português» e o «Terrível», corporizou o momento, o período temporal em que Portugal foi efectivamente mais grande, em terras e mares sobre os quais exerceu o seu poder, e mais forte. Sob o comando de Afonso de Albuquerque Portugal alcançou o máximo de dimensão… e de coragem. Mas em 2015 o seu perfil e o seu percurso já estavam algo esquecidos da memória colectiva dos portugueses, provavelmente porque ele é, sem dúvida, o símbolo supremo do nosso passado imperial, e, logo, «politicamente (e historicamente?) incorrecto». Assim, teve de ser uma organização não governamental, vinda da sociedade civil, o MIL, a colmatar a lacuna.

Algo de semelhante, aliás, havia acontecido menos de quatro meses antes. A 21 de Agosto assinalaram-se os 600 anos da conquista de Ceuta, e, logo, do início da época mais gloriosa desta nação, a dos Descobrimentos. O silêncio teria sido quase total se não fossem alguns textos, artigos, na imprensa e em blogs. Não houve sobre o assunto qualquer declaração pela Presidência da República e/ou pela Presidência do Conselho de Ministros, por ministérios ou secretarias de Estado, enfim, pelo governo, pessoalmente ou pelos seus sítios na Internet. Entretanto, na cidade espanhola do Norte de África o então respectivo executivo autárquico, e ao contrário do que aparentemente prometeu, não realizou qualquer cerimónia comemorativa, também porque se terá receado – o que é ridículo – ofender a população muçulmana local; além de que nunca seria de esperar que «nuestros hermanos» tivessem verdadeiro interesse em enaltecer os feitos de antanho, civis e militares, de Portugal.

A relutância pelos poderes estatais nacionais em recordar e em festejar as datas mais importantes da nossa História é, de facto, relativamente recente e, por vezes, surpreendentemente selectiva. Há cerca de 20 anos verificou-se uma quase inexistente evocação de sucessivas efemérides da Guerra Peninsular, isto é, dos dois séculos sobre as batalhas travadas durante as invasões pelos exércitos de Napoleão Bonaparte no início do século XIX; porém, e praticamente em simultâneo, assinalou-se de uma forma dispendiosa, exagerada e propagandística o centenário do golpe de Estado que em 5 de Outubro de 1910 instaurou a república, e, logo, derrubou uma democracia e instalou uma ditadura. Pouco mais de uma década antes, em 1998, o empreendimento monumental que foi a Exposição Internacional de Lisboa – juntamente com a nova ponte sobre o Tejo – comemorou, a uma escala nunca previamente vista no nosso país, a descoberta por Vasco da Gama do caminho marítimo para a Índia.

Da exaltação passou-se para a omissão, e desta para a condenação: para os revisionistas esquerdistas as Navegações significam fundamentalmente colonialismo e escravatura. O que explica esta «progressiva» alteração? Não será tanto o efeito da inevitável passagem do tempo mas, sim, mais a consequência de determinadas pessoas ascenderem a posições cimeiras na hierarquia política, e de as suas palavras e acções terem, por isso, uma influência e um impacto acrescidos.

Em 2024 Marcelo Rebelo de Sousa, então «inquilino» do Palácio de Belém há oito anos, admitiu perante jornalistas estrangeiros a possibilidade de o nosso país vir a pagar «reparações» a actuais nações que foram suas províncias ultramarinas. Nem as muitas e contundentes críticas de que foi alvo, nem a disponibilidade manifestada pelos governos do Brasil e de São Tomé e Príncipe em se tornarem beneficiários, terão sido factores suficientes para o convencer de que tal atitude não era a mais correcta, pois reencidiu nela a 10 de Junho deste ano, tendo desta vez a «apoiá-lo» Lídia Jorge, cujo discurso foi possivelmente o mais ofensivo contra Portugal alguma vez proferido… numa cerimónia do Dia de Portugal.

Pior, Lagos foi escolhida deliberadamente para ser publicamente apontada e castigada pelo seu alegado pioneirismo no tráfico de pessoas; ser a sede da «comemoração», desta vez, não representou uma honra mas sim um opróbrio. É legítimo deduzir que esta auto-flagelação terá incentivado: João Lourenço, Presidente de Angola, a insultar a antiga metrópole a 11 de Novembro durante o discurso que proferiu – na presença de Marcelo, que não reagiu – aquando da celebração dos 50 anos da independência do seu país, com referências a «séculos de humilhação e de exploração» que deixaram «marcas profundas que ainda hoje se fazem sentir», numa óbvia e desavergonhada tentativa de deflectir a culpa do regime do MPLA no sub-desenvolvimento e na corrupção; e Lula da Silva, a ordenar à embaixada e ao consulado-geral do Brasil em Lisboa, no início do mês passado, a criação e a concretização de uma campanha permanente (ou seja, sem prazo para terminar) contra «o racismo e a xenofobia em Portugal», que poderá incluir a exigência de punições a cidadãos nacionais.

É por estas e por outras que a eleição para a Presidência da República no próximo dia 18 de Janeiro de 2026 se reveste de especial importância. Trata-se também de escolher alguém que, finalmente, naquele cargo defenda a dignidade do país em permanência e com firmeza. E que acredite não em rever a História mas sim em a reaver.

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