Quando o poder abandona as vítimas

Há crimes que não são apenas violações da lei. São ruturas morais profundas. A suspeita de crimes sexuais contra crianças atribuída a Paulo Abreu dos Santos, adjunto da ministra da Justiça Catarina Sarmento e Castro no Ministério da Justiça entre 2023 e 2024, confronta-nos com uma pergunta desconfortável: estamos a fazer tudo o que é razoável para prevenir a reincidência e proteger as vítimas mais vulneráveis?

Este caso, independentemente do desfecho judicial, expõe uma realidade conhecida e persistente. O homem que integrou o coração do Estado, com acesso privilegiado a informação e a redes institucionais, é agora suspeito de centenas de crimes de pornografia de menores e de abusos sexuais contra crianças. Não é um desvio marginal. Não é um acaso isolado. Já não é a primeira vez que alguém proveniente de círculos próximos ao poder, incluindo pessoas ligadas ao Partido Socialista e ao anterior governo sob a liderança de António Costa, se envolve em casos de natureza chocante. Estes episódios reiterados levantam questões graves sobre critérios de escrutínio e responsabilidade política no Governo.

Os crimes sexuais contra menores apresentam taxas de reincidência relevantes, sobretudo em perfis específicos, e causam danos irreversíveis às vítimas. A resposta penal tradicional, centrada quase exclusivamente na pena de prisão, tem-se revelado insuficiente. Digo-o também por experiência própria. Na minha realidade profissional de proximidade com reclusos, contactei de perto com autores deste tipo de crimes que, após cumprirem pena, regressavam ao sistema prisional por reincidência no mesmo padrão de abuso. A prisão, por si só, não alterou o risco. Quando a porta da cela se abre, a sociedade volta a apostar conscientemente na sorte. Se correr mal, paciência: mais uma criança sacrificada no altar do “direito penal clássico”.

É neste contexto que a castração química deve deixar de ser um tabu ideológico e passar a ser discutida como instrumento de política criminal preventiva.

Apesar do peso histórico associado ao termo, a castração química não é uma verdadeira castração. Trata-se de uma medida moderna, já aplicada em países como França, Itália, Dinamarca, Suécia, Polónia, Estónia, entre outros, com enquadramento médico e judicial. Consiste na administração periódica de medicamentos hormonais que reduzem temporariamente a libido, sendo um tratamento reversível, já que a interrupção da medicação permite o regresso gradual da função hormonal.

Estes medicamentos diminuem o desejo sexual e as fantasias compulsivas, reduzindo significativamente os comportamentos sexuais violentos e, sobretudo, a reincidência.

Os dados são claros. Estudos indicam que, sem este tipo de tratamento, a reincidência em crimes sexuais pode rondar os 70%, enquanto nos casos em que é aplicada a castração química essa taxa desce para valores próximos dos 2%. Em contraste, a prisão pouco faz para reabilitar: suspende o comportamento durante algum tempo, mas não elimina o impulso que, em liberdade, tende a reaparecer.

O argumento de que esta medida viola direitos humanos merece ser levado a sério e é precisamente por isso que deve existir avaliação clínica independente e decisão judicial fundamentada. Mas há um direito que raramente ocupa o centro do debate: o direito das crianças e das mulheres a não serem vítimas. Quando direitos colidem, o Estado não pode escolher a abstração em detrimento da proteção concreta.

Há ainda quem alegue que “não resolve o problema”. Nenhuma medida isolada resolve. Mas recusar uma ferramenta eficaz porque não é perfeita equivale a aceitar o risco de novas vítimas em nome do conforto moral.

Este caso desmonta um mito perigoso de que predadores sexuais são figuras marginais, facilmente identificáveis. Não são. Podem ser instruídos, integrados, próximos do poder. É por isso que a prevenção não pode depender apenas de vigilância social ou de sinais exteriores, precisa de mecanismos estruturais.

Investir na castração química integrada num pacote sério de prevenção não é ceder ao populismo penal. É reconhecer que a dignidade humana começa pela proteção dos mais frágeis e que a justiça não pode limitar-se a punir depois do irreparável.

É urgente avançar com uma proposta de nova legislação nesta matéria, para deixar claro o que pensam os vários partidos políticos. Terão coragem de colocar a proteção das crianças e das mulheres acima de conveniências políticas? Ou irão continuar a proteger o sistema à custa da segurança dos mais vulneráveis? Será o momento da verdade.

O escândalo não é discutir esta medida. O escândalo é continuar a fingir que o sistema atual protege quando deixa vulnerável quem não devia deixar. Nunca.

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