Que boa vida era a de Lisboa

O homem que pretendo homenagear chama-se Fausto Bordalo Dias, meu contemporâneo, mas de quem nunca me aproximei só porque me lembrava das suas companhias como Zeca Afonso ou Adriano Correia de Oliveira. Sem nada de pessoal contra os mesmos estávamos na realidade em campos opostos e na altura em que cantavam canções de protesto o meu coração, a minha mente, os meus ouvidos e a minha vontade de servir, preferiam e preferem, tal como ainda agora, outro tipo de música.

No que diz respeito a Fausto, porém, eu estava enganado e quero com este texto, lamentar ainda a tempo a minha opção, pedindo-lhe perdão por tantos anos de incompreensão e ignorância sobre o homem que afinal, eu nunca quis mesmo compreender. Hoje e aqui, quero divulgar o meu ato de redenção pela atitude.

Depois do 25 de abril de 1974 e estando eu ainda na guerra do ultramar, Fausto começou a separar-se dos amigos referidos, não porque deixassem de ser amigos, tão simplesmente porque escolheram caminhos diferentes. Como ele bem dizia, depois do 25 de abril deixou de haver unidade entre eles, daquela unidade política que parecia juntá-los. Fausto afasta-se e dedica-se à música tradicional portuguesa. Tendo à cabeceira da sua cama a Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, lê dos cronistas as muitas histórias trágico-marítimas e chora com as revelações de Bernardo Gomes Brito sobre as tragédias vividas.

Como li numa crónica de António Carlos Cortez, -“Morreu um dos nossos mais originais músicos e tão poucas palavras se disseram. Passou-se uma música aqui e outra ali e numa estação de rádio e ouviu.se durante um dia o que não se ouviu durante décadas.”

Ouvir Fausto e os cavaquinhos, as guitarras e os sininhos, tambores vários e compassados, pandeiretas e acordeões ou flautas várias foi um encanto. Quem vai descobrir agora violas braguesas, recos e pianos por de entre aquela tão melodiosa algazarra que faz saltar pés e corações?

“Por este rio acima” lembra os sonhos de Fausto sobre a Peregrinação. Lembra o “orelhudo” como ele a si próprio se chamava, pois, “tocava de ouvido” e se tocava este extraordinário guitarrista. Que não era poeta repetia ele. Mas um compositor, amante e orgulhoso da história dos seus antepassados.

Lembro-me da entrevista que, em 2021, deu a Fátima Campos Ferreira, jornalista que muito admiro. Ao ser-lhe perguntado a quem comparava os nossos navegadores. Fausto respondeu simples. Que comparação só com os atuais exploradores do espaço, que buscam caminhos para a Lua e Marte. Sentados no interior da torre de Belém, miravam as margens do Tejo e pareciam ver as partidas e as chegadas, os acenos e as lágrimas, o ir de um povo desafiando o mundo e os velhos do Restelo. Iam, segundo Fausto, “no espantoso trono das águas, no tremendo assopro dos ventos, por cima dos seus pensamentos. Arrepia, arrepia, Ai arrepia, sim senhor! E ai que vida boa era a de Lisboa!

Li um comentário equilibrado sobre a discreta presença de Fausto Bordalo Dias que merece uma outra projeção e mais divulgação na música portuguesa porque tão somente canta o que fomos e como gloriosa e grande foi a história dos nossos antepassados. Hoje, à volta com o racismo, Fausto, com aquele olhar calmo e bom dizia, O RACISMO TEM TODAS AS CORES, do amarelo ao branco, do vermelho ao negro e é afinal uma perversão de todas as culturas e isso, ao contrário do que agora se pensa, não se apaga de um momento para o outro.

O homem que, como ele próprio referia, não cantava as pessoas que viviam no convés, mas as que sempre viveram na proa, dizia também outras verdades. Daquelas que todos parecem compreender, mas de quem ninguém gosta de falar porque atropelam ideologias, confrontam dogmas idiotas e inverdades convenientes a certos “gestores” dos atuais padrões da sociedade.

Dizia ele amargurado que Cabo Verde não existiria como país independente se os portugueses não tivessem enviado para lá gente e que outros dos países ditos colonizados, viviam bem mais felizes quando ainda sob a bandeira portuguesa. Dizia mais. Que quando a independência não contribui para a felicidade dos povos, alguma coisa está mal.

Vejo agora a razão pela qual é discreta a presença de Fausto entre os melhores da música e da cultura portuguesa. Porque neste país dito democrata, ainda há verdades que não podem ser ditas. Porque parece mal, porque não é conveniente e está contra os padrões de “consciência” atual. E é pena porque esta é a verdadeira e talvez única razão pela qual, tendo a tingido a glória, somos agora tão pequenos e vivemos contra nós mesmos, com medo de enfrentar a realidade.

Se alguma vez houver dinheiro para fazer um filme sobre os nossos navegadores e a nossa expansão marítima, espero que seja sobre a epopeia de Vasco da Gama, o almirante do mundo, cantado e celebrado em ópera própria. A música ficará a cargo de Fausto Bordalo Dias, o homem que dentro do modernismo atual, melhor soube cantar os nossos heróis. A música principal do guião será por certo a sua magnifica evocação dos nossos em “O barco vai de saída.”

Cenário num outro futuro, que desejo rápido, próximo e diferente.

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