A 79.ª Assembleia Geral das Nações Unidas, em setembro último, adotou o “Pacto para ao Futuro”, cuja ação 39.ª estabelece o compromisso dos 193 Estados-membros com a reforma do Conselho de Segurança (CS), tornando-o mais “representativo, inclusivo, transparente, eficiente, eficaz, democrático e responsável” – o que ofereceu a vários líderes africanos o pretexto para sublinharem a legitimidade do alargamento do órgão a dois membros permanentes escolhidos pelo continente.
Anthoni van Nieuwkerk, professor de Estudos Internacionais e Diplomáticos na Escola Africana de Assuntos Públicos e Internacionais Thabo Mbeki da Universidade da África do Sul, com vários trabalhos sobre a arquitetura africana de paz e segurança, questiona, não apenas os vários argumentos evocados, como apresenta outras tantas razões pelas quais a tentativa de alargar o CS, a ir por diante, “deverá fracassar”.
Além dos atuais membros permanentes do CS – Estados Unidos, Rússia, China, Reino Unidos e França – se mostrarem “profundamente relutantes em abrir mão do poder que têm atualmente”, segundo Nieuwkerk, as próprias estruturas eletivas africanas (a União Africana, UA) garantem poucas perspetivas de sucesso na escolha de dois membros permanentes de entre os 54 Estados africanos elegíveis.
“Este é um assunto perene e não acredito que venha daí alguma coisa de diferente nos próximos tempos”, reforça Peter Fabricius, outro analista sul-africano, investigador no Institute for Security Studies, em Pretória, especialista em assuntos de segurança em África.
“Para mim, uma das grandes ironias é a que vemos com os BRICS [bloco de países formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]. Três deles estão a tentar alcançar o estatuto de membro permanente do CS [Brasil, Índia e África do Sul] e dois já o são; no entanto, olhamos para as declarações da China e da Rússia e nunca vemos nada de concreto em relação a um apoio da inclusão dos outros três”, sublinha.
Fabricius lembra que, em declarações sobre o CS, o novo chefe da diplomacia sul-africana, Ronald Lamola, defendeu há dias a sua reforma, apontando como prova dessa necessidade as dificuldades que as Nações Unidas têm em lidar com problemas como as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza, “o que é ridículo, porque quanto mais membros o CS tiver, maiores serão os desentendimentos”, conclui o investigador.
“O que sabemos do CS é que tem ficado sempre paralisado na resposta aos maiores problemas, como as guerras na Ucrânia e em Gaza. Não estou a ver como é que um CS alargado responderia melhor a essas questões”, acrescenta.
Anthoni van Nieuwkerk desenvolve argumentos semelhantes: considera que “as Nações Unidas – e os sistemas de governação e de segurança globais – estão paralisadas e em rutura, presas num momento de transição entre uma ordem mundial única e outra ordem mundial emergente, que ninguém pode prever como será dentro de um ano, cinco ou dez”.
“Quando as pessoas voltam os olhos para o sistema das Nações Unidas esperando que intervenha de forma decisiva, para impedir as atrocidades e os crimes de guerra na Ucrânia, em Gaza, na Cisjordânia, no Líbano, na Síria, na Somália, no Sudão, a ONU não está em lado nenhum”, reforça.
Este contexto torna óbvia uma conclusão, ainda segundo o professor da Thabo Mbeki School: Se a instituição de topo do sistema ONU, que é o CS – cuja missão fundamental é estabelecer a paz e acabar com as guerras -, não for capaz de levar a cabo aquilo para que foi constituída, então o sistema está falido e os seus fundamentos precisam de ser reformados.
Em contrapartida, “se se acredita que o sistema internacional não precisa de um polícia global, ou de um diplomata global, ou de um exército global, então não há lugar para o CS ou para a ONU na busca da paz e da segurança internacionais”, conclui.
Uma forma de “sair deste dilema”, mantendo o sistema das Nações Unidas e o CS, seria eventualmente devolver a tomada de decisões, autoridade e financiamento a organismos continentais ou regionais para que tomassem as decisões que os cinco membros permanentes do CS não conseguem tomar, sugere Nieuwkerk.
Esta proposta enfrenta, no entanto, desafios importantes. A União Africana, por exemplo, “tem problemas, obstáculos, limitações deficiências, desafios”, enumera o professor sul-africano.
Daí que, acrescenta, deve vir acompanhada de uma adenda, uma frase extra que diga: “Onde as instituições regionais e sub-regionais são incapazes ou limitadas na sua capacidade de tomar decisões, devem ser capacitadas, reforçadas, apoiadas, treinadas, equipadas, educadas, de acordo com programas de ação que precisam de ser implementados”.
Mas é mesmo desejável manter o “sistema” da ONU, onde anualmente se assiste ao desfile de líderes autocráticos ou acusados de crimes de guerra, alguns deles apenas acabados de dirigir golpes de Estado militares, como foi o caso mais uma vez este ano, a defender os valores inscritos na Carta das Nações Unidas?
“A hipocrisia de países que não são democratas exigirem todos os anos mais democracia é ridícula”, diz Fabricius.
“Li ‘O pacto para o futuro’. É um documento longo, com muitas cláusulas, que não tem nada que me inspire como cidadão e que me diga que a ONU vai fazer as coisas de forma muito diferente do que está a fazer agora”, afirma van Nieuwkerk.
“Não estou convencido com o que a ONU está a fazer. Penso que devemos convocar uma Assembleia Mundial de Cidadãos e permitir que os cidadãos tenham voz e agência para reimaginar a ONU e os seus objetivos”, iniciando um processo capaz de “desbloquear uma dinâmica que está a faltar, que é fechar o fosso entre as instituições lá em cima e as pessoas aqui no terreno”, acrescenta.
“Espero que essa Assembleia dos Cidadãos defina um conjunto de valores que orientem uma organização que possa intervir para reduzir a guerra e os conflitos e promover a paz. E nessa instituição não se pode permitir que subam ao pódio pessoas sem moral ou acusadas de crimes de guerra, de crimes contra a humanidade. Isso não será permitido. Temos de evitar que as elites joguem os seus jogos”, conclui.