A ocultação da verdade não é uma invenção moderna. Contudo, as formas de a disfarçar evoluíram drasticamente ao longo dos séculos. No início do século XX, a censura directa era a arma preferida dos regimes autoritários e das instituições que pretendiam controlar o discurso público. Silenciavam-se vozes incómodas, eliminavam-se livros, artigos e discursos que desafiavam o status quo. A censura era visível, palpável e, em muitos casos, até reconhecida como tal.
Contudo, com a chegada da era digital, assistimos a uma transformação desta estratégia. A censura directa deu lugar a uma forma mais insidiosa e difícil de combater: a desinformação através do excesso de informação. O controlo da verdade deixou de depender do silêncio, passando a ser exercido através do barulho. Hoje, não é preciso apagar uma notícia para ocultar a realidade — basta soterrá-la num mar imenso composto de meias-verdades, rumores e manchetes sensacionalistas.
Se é inegável que o digital trouxe benefícios extraordinários — acesso rápido à informação, democratização do conhecimento e vozes activas no debate público — também é verdade que abriu as portas a um fluxo incessante de desinformação capaz de ameaçar a própria noção de verdade. As redes sociais, através dos seus algoritmos e bots de comunicação, tornaram-se arenas onde frequentemente as opiniões se misturam e são muitas vezes confundidas como factos concretos, e onde a propaganda se disfarça de jornalismo, trazendo de volta tribalismos que julgávamos enterrados nas correntes do tempo.
Este renascimento do tribalismo é um dos maiores perigos para nossa sociedade. As redes sociais amplificam estas divisões, incentivando a formação de grupos fechados em bolhas que rejeitam qualquer perspectiva que contrarie os seus pontos de visão e as suas crenças. Este isolamento ideológico reforça preconceitos, aumenta a polarização e transforma debates saudáveis em conflitos destrutivos, criando dessa forma barreiras insuperáveis, onde a identidade do “nós” se define apenas em oposição ao “outro”.
Neste mês em que se comemoram 80 anos da libertação do campo de concentração de Auschwitz, é inevitável reflectir sobre quais teriam sido os perigos destas ferramentas nas mãos de figuras como Adolf Hitler. O seu regime utilizou os meios tecnológicos disponíveis na época — a rádio, o cinema e a propaganda visual — para manipular massas e consolidar um projecto de ódio e destruição. Agora, imagine-se qual seriam o impacto das tecnologias digitais ao serviço de tais ideologias.
Plataformas sociais poderiam ser usadas para disseminar desinformação à escala global, manipulando algoritmos com o objectivo de amplificar mensagens de ódio e dividir populações. Bots e perfis falsos poderiam espalhar propaganda antissemita, criar falsos consensos e desencorajar a resistência. A monitorização digital, através de dados recolhidos em massa, permitiria a identificação e eliminação de opositores com uma precisão assustadora.
Parece-nos familiar? Qualquer parecença com a realidade não é pura coincidência…
Hoje, mais do que nunca, é crucial cultivar o pensamento crítico. Apenas através desta capacidade conseguiremos navegar no oceano de informação em que vivemos, identificando o que é real e relevante, distinguindo factos de opiniões ou manipulações. Desenvolver esta habilidade exige esforço colectivo e individual. É necessário promover a literacia digital, incorporando-a nos sistemas educativos desde cedo, e criar espaços onde o diálogo informado seja valorizado. Mas a responsabilidade também recai sobre cada um de nós, como consumidores de informação. Precisamos de aprender a ler para além dos títulos sensacionalistas, a verificar as fontes e a recusar o imediatismo que tantas vezes nos leva a partilhar desinformação sem reflexão.
Recordar Auschwitz é mais do que revisitar o passado; é enfrentar a realidade de até onde a humanidade pode descer quando a verdade é silenciada e a crueldade se normaliza. É um alerta poderoso sobre os riscos de aceitar o inaceitável e permitir que o silêncio encubra injustiças. A memória de Auschwitz desafia-nos a proteger os valores fundamentais de dignidade e respeito, lembrando que a complacência pode ser tão destrutiva quanto a acção deliberada.
A justiça e a liberdade nunca foram garantias absolutas. Ambas exigem esforço constante, pensamento crítico e coragem para questionar e resistir à manipulação. O futuro depende do que fazemos hoje. Cada partilha irreflectida, cada título sensacionalista que promovemos, cada vez que preferimos o conforto das câmaras de eco em vez do debate honesto, damos um passo em direcção ao risco que tanto tememos.
A resposta está nas nossas mãos, na nossa coragem de resistir à manipulação e na determinação de utilizar as tecnologias digitais como instrumentos de progresso e humanidade, nunca como armas de divisão e destruição. Que a memória nos inspire a proteger os valores fundamentais de dignidade, justiça e liberdade, assegurando que as lições da história nunca sejam esquecidas e jamais repetidas.
Talvez a verdadeira questão não seja apenas “como seria o mundo se Hitler tivesse tido acesso às tecnologias digitais?”, mas antes “como podemos, num mundo filtrado por uma ‘cortina de Silício’, assegurar que essas mesmas ferramentas jamais sejam transformadas em instrumentos de opressão capazes de reacender as tragédias do passado?”.