Nos círculos mais criativos, irreverentes e auto-intitulados progressistas das grandes cidades, começa a desenhar-se um fenómeno curioso e, para muitos, desconcertante. Figuras do mundo boémio, outrora alinhadas com a esquerda cultural e política, começam a manifestar, ainda que em silêncio ou atrás da cortina do voto secreto, uma crescente simpatia pelo Chega. A pergunta impõe-se: porquê?
A resposta, embora desconfortável, é simples: o confronto entre o idealismo e a realidade.
Durante décadas, a esquerda ocidental e a sua versão lusitana abraçou uma visão do mundo baseada em dicotomias morais fáceis: oprimidos versus opressores, colonizados versus colonizadores, marginais versus elites. Esta narrativa permitiu à elite cultural viver em paz com os seus privilégios, legitimando-os através da solidariedade simbólica com “os outros” imigrantes, minorias, refugiados, comunidades tradicionalmente marginalizadas.
Mas o problema surge quando essa solidariedade teórica entra em colisão direta com o estilo de vida quotidiano desses mesmos boémios de esquerda. E isso está a acontecer.
Nos bairros outrora dominados pela liberdade sexual, consumo recreativo de substâncias, festas alternativas, arte marginal e expressão livre hoje frequentemente habitados por criadores, performers, freelancers e nómadas digitais começam a surgir fricções com recém-chegados que, vindos de culturas profundamente conservadoras, não partilham nem compreendem esse modo de vida.
O “Abdul” e o “Mohamed” da nova realidade europeia são muitas vezes homens oriundos de contextos onde a homossexualidade é tabu, o papel da mulher é restrito, e a religião regula toda a moral social. E embora muitos sejam apenas indivíduos em busca de segurança ou oportunidades, também é verdade que alguns carregam
consigo uma visão do mundo inconciliável com a utopia liberal-progressista das metrópoles europeias.
O resultado? Atritos, tensões, medos e uma lenta, mas real, transformação das atitudes políticas de quem até ontem defendia “fronteiras abertas” e “refugiados bem-vindos”. Não se trata de uma guinada ideológica consciente, mas sim de uma reação visceral à incoerência entre o discurso e a experiência concreta.
Aqui reside o cerne da questão: defender ideais abstratos é fácil quando não se sofre as consequências práticas desses mesmos ideais. Mas quando os “oprimidos” que se acolhem se mostram hostis aos próprios valores que sustentam a liberdade artística, sexual e moral dos seus anfitriões, a dissonância torna-se insustentável.
Este fenómeno revela não apenas a hipocrisia latente em boa parte da esquerda caviar, mas também os limites do multiculturalismo como dogma intocável. Importar comunidades inteiras com códigos morais fundamentalmente incompatíveis com os valores ocidentais sem qualquer filtro ou exigência de integração é, no fundo, um
acto de arrogância ideológica e de irresponsabilidade política.
A emergência de um voto boémio pró-Chega é a tradução prática de uma verdade que muitos começam a encarar: os valores da liberdade ocidental não são universais. E não sobreviverão se forem sistematicamente sacrificados no altar de uma solidariedade cega e acrítica.
Enquanto a esquerda se fecha na negação e continua a rotular de “fascista” tudo o que escapa à sua narrativa, são cada vez mais os que, na sombra, se aproximam daqueles que ousam apontar o óbvio: nem todos os “oprimidos” são santos, nem todas as culturas são compatíveis. E se quisermos preservar a liberdade que nos define, temos de ter a coragem de escolher entre o relativismo total e a civilização.
Essa escolha, para muitos, já está a ser feita discretamente, nas urnas.