Excelentíssimo Senhor Literal

Andava eu nas ruas da Vila de Sintra, terra onde a arte humana abraça a natureza com excelência e com precisão exímia. Terra onde os amores mais apaixonados tiveram lugar, onde os autores dos livros descrevem com as suas canetas a transpirar admiração, enquanto são transportados para as suas lembranças de tempos afortunados, tempos da juventude de proveitoso valor para as artes do coração selvagem, tão selvagem como as florestas que rodeiam aquela Vila, aquela Vila de Sintra.

É um lugar perfeito para apreciar a beleza de um mundo que há muito jazia perdido nas brumas da memória popular, aquela arquitetura suave e singela, bela e humilde. O Castelo lá no alto quase toca as nuvens de algodão que tanto gostam de tapar o sol a qualquer altura do ano, que prazer ser de Sintra, que prazer estar em Sintra. Lá das encostas, que são varandins para outro mundo, vê-se um mundo que contrasta com a obra que se desenvolve lá em cima, uma construção soviética, sem amor, apenas traços retos, os seus arquitetos sem vontade de fazer melhor.

É uma ótima analogia para o mundo esta Sintra portuguesa, uma analogia para o resto do nosso tecido social e político lusitano. Do cimo da serra, vê-se o mundo, um mundo estranho para quem lá vive, sem vontade, apenas um comboio que rasga as paisagens no seu caminho de ferro que o leva para lugares onde o trabalho é lei e a única força que motiva as pessoas a seguirem no seu interior. No topo, uma vida de prazer e de doçuras, não importa o que os plebeus querem ou dizem.

Como disse, uma boa analogia para a nossa classe mediática e política, tão distantes do povo que dizem informar ou governar, não lhes conhecem a língua ou expressões. Já iria ver que este facto é mais do que uma metáfora para a situação em que estamos, seria uma verdade avassaladora.

Caminhava na direção da Periquita, já a larica batia-me no ventre, clamando por um doce ou doçura, estrangeira ao meu dia a dia. Ao longe via uma cara conhecida, era o Excelentíssimo Senhor Literal, ou para os amigos, o Senhor Osmédia, Osmédia Literal.

Ele vem a passos largos cumprimentar-me, somos velhos conhecidos de outros andares da vida. Ao chegar perto de mim, faço um ar de esforço para conseguir superar aquilo que já esperava. Conversa vai, conversa vem, falava sobre como consegui terminar dois trabalhos de uma vez só, para descrever este feito de que me orgulhava bastante, disse:
“Acabei ambos, ficaram perfeitos, matei dois coelhos de uma cajadada só.”. Um silêncio tomou a antes ativa conversa, ele olhava para mim com um olhar de reprovação, retorquiu: ” Que ultraje que vocemessê me diz! Como é capaz de ter morto, nesse seu trabalho hediondo, dois coelhinhos inocentes, vocemessê é um monstro, uma besta desmedida!”. Fui com a mão à testa, o que fui eu dizer nas minhas qualidades de popular. Respondi àquela ofensa: “Valha-me Deus, parece que caiu o Carmo e a Trindade”, o que fui eu dizer novamente. “Para além de ter morto uns animais inocentes, ainda me esconde a notícia de que caiu a Igreja do Carmo e a Trindade!”.

Respirei com calma e concentrei-me para não despoletar ali um incidente de violência para com o transeunte que eu conhecia, infelizmente. Desconversei imediatamente, aquilo não ia dar a lado nenhum. Conversa vai, conversa vem, chegamos ao ponto de que falava sobre um curso que pretendia completar pelo final deste ano, enunciei o estado do meu estudo: “Nestes dias, nem imaginas, quando é semana de frequências é noites a queimar as pestanas.” Ele colocou-se a olhar para a minha face com afinco, procurava as marcas das minhas alegadas tentativas de queimar as pestanas, frustrado, nem lhe dediquei palavras para deferir o assunto.

Contra o meu bom senso, a conversa manteve-se. Utilizei, por hábito, expressões que me saem como ar que expiro. “Fala o roto para o nu”, lá foi ele questionar a minha escolha de descrição do seu vestuário rico de queque de Cascais, aquele vestuário não merecia vis palavras. Falei dos partidos que discutiam na tão distante (ainda bem) Assembleia, enunciei que eles “puxavam a brasa à sua sardinha”, lá foi ele questionar- me sobre uma decorrente sardinhada na casa da democracia portuguesa. Isto continuou por bastante tempo, como vocês, meus fiéis leitores já perceberam. “Não era lá grande espingarda aquele orador”, lá foi ele questionar-me sobre a minha ilegal posse de armas e como utilizei aquele utensílio uma vez para determinar a sua qualidade.

“Esta conversa está a ser um tiro no porta-aviões”, lá foi ele questionar-me sobre um ataque a algum porta-aviões de alguma marinha algures no globo. Acho que vocês, meus leitores, já perceberam a ideia, nem vos vou maçar com mais exemplos da tortura e sofrimento a que eu estava sujeito naquele momento, que parecia demorar imenso tempo. Era uma vida que passava e uma lesão mental que se ia desenvolvendo.

Já a minha paciência estava no limite quando abordei mais o tema do país. “Não saímos da cepa torta, como diz a expressão: era preciso 3 salazares para endireitar este país.” A sua face tomou um vermelho vivo borbulhante, a sua democracia interior estava a gritar para fazer justiça à minha afirmação autoritária, ele preparava para descarregar sobre mim toda aquele sentimento de repúdio que germinava dentro da sua alma. “Mas tu estás parvo, meu caro Fascista? Aqueles tempos eram terríveis, horripilantes e tenebrosos, como ousas dizer que, já não bastava um, precisávamos do triplo da miséria? Ai por amor de Deus, que ele te endireite e que te coloque nos bons caminhos que os deuses esotéricos da ditadura estão a conduzir-te para afirmares que precisamos de 3 Aljubes ou 3 fortes de Peniche para albergar toda a tortura aos opositores! És um terrorista à democracia, devias ser apanhado pela PIDE e sentir o que o meu pai sofreu, antes de me colocar no meu cargo importantíssimo dentro da sua companhia de comunicação!”

Eu olhava embasbacado para aquele desconhecimento do vocábulo popular, era espantoso a desconecção do Excelentíssimo Senhor Osmédia Literal…Os Mídia…tão separados da terra dos seus compatriotas, como o Castelo dos Mouros, que quase toca as nuvens, está separado daqueles que fazem a vida no distante vale que lhe precede.

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