As cerimónias fúnebres de Naël Merzouk, de 17 anos, baleado na terça-feira por um polícia, realizaram-se sem aparato, mas para a população a violência dos últimos dias é sintoma da tentativa de esconder os problemas sociais.
Nanterre, nos arredores de Paris, parou durante a tarde de hoje para uma última homenagem a Naël, o rapaz cujo homicídio por um elemento das forças de segurança espoletou uma onda de revolta que foi paralelamente acompanhada por confrontos com a polícia e a vandalização de estabelecimentos e edifícios governamentais em várias cidades francesas.
A falta de espaço no interior da Mesquita Central de Nanterre não impediu as centenas de pessoas que quiseram participar na despedida a Naël. Cerca de 300 que não conseguiram entrar ajoelharam-se no meio da Avenida Georges Clémenceau durante a Salat al-Janazah (oração fúnebre).
Elementos da mesquita circulavam por entre a multidão que, cá fora, assistia à cerimónia, atentos a possíveis desacatos e a qualquer pessoa que quisesse captar o momento com o ‘smartphone’.
“Desligue isso, tenha respeito pela família! Só vamos embora quando guardar o telemóvel”, ouviu-se várias vezes.
“É estranho, não vejo polícia… Possivelmente foi um acordo com a autarquia e autoridades religiosas”, comentou com a Lusa Michael Maschek, depois de o cortejo fúnebre partir da mesquita.
Residente há 30 anos em Nanterre, Michael, que está sentado em cima de um pequeno muro, de óculos de sol, ‘t-shirt’ azul e calções de ganga, contou que ainda está consternado com o que aconteceu na terça-feira: “Foi a 100 metros de minha casa.”
Não apoia a violência que paralelamente fustigou Nanterre e que alastrou a outras partes do país, mas não censura os manifestantes que “são apenas miúdos”.
Um pouco por toda a Avenida Georges Clémenceau havia vestígios de pilhagens, restaurantes e repartições públicas vandalizados. Não havia restaurantes abertos este sábado e os transportes públicos não circularam.
A conversa de Michael com a Lusa foi interrompida abruptamente por dois homens que abordaram com alguma hostilidade o professor por estar a falar com um jornalista, e não quiseram parar para explicar a revolta com os repórteres, apesar da insistência da Lusa.
“Eles não têm culpa. Os jornalistas franceses apenas aparecem cá quando há problemas e apelidam-nos de terroristas, é normal que se sintam assim”, comentou o professor.
Michael Maschek saiu de casa apenas para ver as cerimónias fúnebres: “É o meu bairro, conheço-lhe todos os cantos e todas as pessoas.”
Não conhecia pessoalmente Naël e apesar de ser crítico da violência, Michael considerou que há semelhanças entre o que aconteceu esta semana e o homicídio de afro-americano George Floyd, em maio de 2020, em Minneapolis, no Minesota.
A violência que se seguiu, avaliou, é fruto de um Governo que preferiu fechar os olhos às pessoas com maiores dificuldades e as abandonou. Na ótica do professor, a negligência levou à exasperação. Só faltava o rastilho.
“Isto é como a pólvora, só é preciso um pouco de fogo. Os problemas sociais aqui, e em outras partes, são tão grandes, mas estão tão escondidos”, completou, culpando o executivo de Emmanuel Macron e os que o antecederam.
Mesmo em frente à mesquita, encostada à parede de um prédio, está uma mulher, com um ‘chador’ bege (peça de vestuário islâmico) que concordou falar com a Lusa, mas preferiu fazê-lo sob a condição de anonimato.
“Sou vizinha deles, conhecia-o e à mãe, e ele não era um delinquente. Era só um miúdo”, lamentou, visivelmente emocionada.
Esta residente em Nanterre disse estar revoltada com o homicídio de Naël, mas em nada está de acordo com o nível de violência que presenciou nos últimos dias.
“Tenho três filhos, o mais velho tem 16 anos. Não o deixei sair de casa para fazer parte disto”, acrescentou.
O cortejo fúnebre do jovem de 17 anos deixou a mesquita em direção ao último momento das cerimónias, acompanhado por dezenas de automóveis e uma “escolta” de motociclos, assim como por largas dezenas de pessoas que caminharam mais de 20 minutos a pé, para estarem presentes na despedida.
Um pouco por todo o lado o ambiente em Nanterre é revelador de uma sensação de impunidade das forças de segurança e de olhar tendencioso dos órgãos de comunicação social. Pelo menos, essa são as ideias mais consensuais das conversas que a Lusa foi tendo ao longo do dia de hoje.
Só na última noite, a quarta desde o início dos protestos, mais de 1.300 pessoas foram detidas e pelo menos 79 polícias ficaram feridos, de acordo com os mais recentes números divulgados pelo Ministério do Interior de França.
Naël Merzouk foi morto por alegadamente desobedecer a uma ordem para parar o veículo que estava a conduzir.