“Sempre foi uma celebração muito livre, muito do povo, muito de iniciativa pessoal e aqui nos Açores vive-se muito antes da Revolução Francesa os princípios da Revolução Francesa. O Espírito Santo é liberdade, fraternidade e igualdade”, diz, em declarações à Lusa, o padre Júlio Rocha.
Na freguesia das Cinco Ribeiras, na ilha Terceira, na véspera do Bodo, comemorado nos domingos de Pentecostes e da Santíssima Trindade, há partilha de “esmolas” de carne, pão e vinho por todos os habitantes.
Ainda a missa de sábado está a decorrer e, no largo no centro da freguesia, várias pessoas colocam mais de 200 “esmolas” em bancos de madeira.
Por um valor simbólico (10 euros), cada família recebe cerca de três quilos de carne de vaca, um pão doce e uma garrafa de vinho, além de um pão por cada pessoa do agregado familiar.
João Cunha está sentado num banco a ver o filho fazer um trabalho que fez durante décadas. A saúde já não o deixa “ajudar como ajudava”, mas ainda vive a festa “com muito gosto”.
Foi procurador (quem organiza a festa) há 48 anos, viu os filhos seguirem-lhes as pisadas e acredita que o neto de 15 anos também o fará.
“É uma tradição que a gente tem há muitos anos”, sublinha.
Isa Soares e o marido foram sorteados como procuradores do 1.º Bodo de 2023. Aceitaram “por respeito e devoção ao senhor Espírito Santo”. “Para nós seria impossível dizer que não”, assume.
“Foi gratificante. Dá muito trabalho, mas vê-se a união que existe na comunidade e a fé que existe do senhor Espírito Santo. No final temos o coração cheio”, acrescenta.
Há seis anos que Cláudia Silva ajuda na organização da festa. Passou a noite de sexta-feira para sábado a preparar as esmolas e o almoço de domingo, com outras 20 pessoas.
Emociona-se quando recorda o dia em que foi convidada para ser procuradora: “Quando nos é apresentada a coroa do Espírito Santo à frente, claro que a gente não consegue dizer que não, porque aquilo é mágico. É uma sensação que não há palavras.”
“Sinto que quando é para o Espírito Santo as pessoas se unem mais e fazem com mais gosto. Eu sinto uma energia muito boa”, acrescenta Sara Martins, cunhada dos procuradores deste ano.
Vive na Florida, nos Estados Unidos da América, há sete anos e, embora a comunidade emigrante mantenha as tradições, garante que nada se compara a viver a festa em casa.
“Dá para matar saudades das sopas do Espírito Santo, mas estar aqui é completamente diferente”, sublinha.
No final da missa, a filarmónica toca e o padre benze as esmolas. Três foguetes chamam o resto da população, mas o largo não se enche como noutros tempos. A freguesia tem hoje perto de 680 habitantes. São cada vez menos e mais envelhecidos.
Luís Leal, presidente da junta de freguesia e escrivão do Bodo desde 2018, garante que o número de cartões vendidos para as esmolas não baixou e defende que a festa tem continuidade assegurada.
“O Espírito Santo é uma questão de fé, de empenho e de dedicação das pessoas. Acho que é uma tradição que não vai acabar nos Açores no curto prazo. Os jovens não se envolvem tanto, mas participam”, aponta.
Além da distribuição de pão, carne e vinho, a festa inclui um almoço, com as tradicionais sopas do Espírito Santo e a alcatra da ilha Terceira, mas também animação musical e touradas.
Os ajudantes, que recebem perto de 15 quilos de carne, contribuem com valores entre 150 e 300 euros – alguns até mais – ou com a criação de gado, mas, apesar de a festa ainda mover a população, as contas são cada vez mais difíceis de equilibrar.
“Temos mantido a mesma qualidade [das esmolas], os preços estão a aumentar e quem ajuda também não pode ajudar tanto como desejaria às vezes”, explica Luís Leal.
A entrega das esmolas é feita na presença de uma coroa e uma bandeira, símbolos do Espírito Santo, que os procuradores Sara e André carregam.
Enquanto aguarda pela sua vez, Francisco Álvares conta que participa para “manter viva a fé” que tem no Espírito Santo e que já “faz parte da tradição”.
“Não há palavras para descrever o que é ter o Espírito Santo em casa”, salienta.
Para Nélia Evangelho, a carne do Bodo tem sempre um outro gosto. “É diferente da que se compra”, afirma.
Já não vive na freguesia, mas mantém a fé que lhe foi passada pelos pais e que conta passar aos filhos. “Sempre gostei desta carne e deste pão. Continuo a vir aqui ao Bodo”, explica.
O padre Júlio Rocha defende que as Festas do Espírito Santo representam a igualdade, porque não distinguem ricos e pobres, que “vestem a mesma roupa, comem à mesma mesa, bebem vinho do mesmo copo, comem a mesma comida, recebem e dão esmolas da mesma forma”.
São também fraternidade, porque têm “o dom de dar aos pobres”. “As esmolas que estão aqui vêm de uma tradição que era alimentar quem precisava de dar de comer aos filhos e não tinha”, conta.
E são liberdade, porque “o espírito é ar” e “ninguém pode prender o Espírito Santo”. “Esta devoção ao Espírito Santo é do mais belo que há a nível religioso nos Açores”, frisa.
Júlio Rocha não é pároco das Cinco Ribeiras, mas não tem dúvidas de que a tradição terá continuidade, nesta e noutras freguesias dos Açores, até porque há “cada vez mais jovens a participar”.
“O Espírito Santo tem uma força tão grande e tão poderosa nos Açores, que até os ateus são devotos do Espírito Santo”, remata.