“Tinha interesse neste tipo de histórias, de revolta e de luta, na forma de transmissão destas histórias, e pensei em como a História é transmitida sem traços físicos na cidade, porque era evidente que a cidade não queria ter esta memória da luta”, conta a realizadora, em entrevista à agência Lusa.
O filme, rodado em Super 8 e Super 16, explora a revolta dos Ciompi, uma das primeiras lutas operárias na Europa, travada em Florença em 1378, quando os trabalhadores da indústria da lã se revoltaram contra os patrões.
O clima instalado, a luta por melhores condições de trabalho e de vida, direito de associação e participação na vida pública, a crítica à estratificação da sociedade e desigualdade ecoam até hoje, incluindo no setor têxtil europeu, e foram objeto de pesquisa por Perrais.
A realizadora chegou ao tema por uma nota de rodapé no livro “Caliban e a Bruxa”, de Silvia Federici (edição portuguesa na Orfeu Negro), levando-a a conhecer Alessandro Stella, historiador militante que estudou este episódio.
“Tive de ir a Florença, tinha interesse nesta história, e tentar ver se havia traços ainda desta luta na cidade. Descobri que não havia nada”, diz.
Essa ausência de memória, comenta, numa “cidade muito burguesa, muito rica, com muito turismo”, fê-la refletir sobre “como a transmissão é uma forma de continuar a luta” através dos tempos.
Filmou três rolos em Super 8 e, depois, contactou Stella para poder contar a história em “Ciompi”, filme que pode ser visto no Porto/Post/Doc, no Cinema Batalha, na terça-feira, integrado na competição internacional.
O “ensaio trans-histórico onde o passado colide com o presente, e desse choque nasce a força do proletariado”, como descreve a sinopse, teve estreia na edição deste ano do festival Cinema du Réel, em Paris, e, para a realizadora, tem contacto com o momento atual.
A ausência do movimento ‘típico’ de lutas laborais nos Coletes Amarelos, os ‘gilets jaunes’ que arrancou em França em 2018, deixou-a “impressionada” e a pensar na teoria autonomista, que Alessandro Stella também estudou, e outros momentos no tempo.
“No momento dos ‘gilet jaunes’, havia muitos realizadores a olhar para isso, mas eu, não sei porquê, tinha a vontade de fazer um filme sobre as ligações entre os tempos. Foi uma forma de falar do presente mas como uma parábola. No meu filme, o assunto é mais do que esta revolta em particular, mas o eco entre os tempos”, explica.
O formato analógico, que prefere, acrescenta uma “noção de nevoeiro” como “forma de mostrar uma Florença muito turística, muito linda, em que tudo é limpo e claro”, trazendo-lhe “algo de sujo”.
“Fiz um filme em formato analógico, e gosto disso. E quando desenvolvi os três primeiros rolos, o que encontrei foi que gostei deles porque criava esta noção de nevoeiro. Para mim, era uma forma de mostrar a cidade. Florença é muito turística, muito linda, tudo é limpo e claro e bonito. Eu gosto destas imagens porque havia algo de sujo, a imagem de Florença em todo o lado. […] Foi uma forma de mostrar que os Ciompi eram os sujos, nesta cidade. Foi através do formato”, explica a cineasta.
Este “trabalho coletivo”, com o resto da equipa técnica, com Marie Bottois no som e edição e Frédérique Menant na fotografia, combinou o Super 8, em que “se tem a impressão de flutuar na cidade”, com o 16, “que parece mais presente, mais estável, com outra presença física transmitida”.
O Porto/Post/Doc decorre até 25 de novembro no Porto, com a maior parte da programação no Cinema Batalha, no ano em que o festival dedicadao sobretudo ao cinema documental celebra a 10.ª edição.