A pré-triagem telefónica nas urgências é, em princípio, uma medida adotada para organizar o acesso aos serviços de saúde, evitar a superlotação dos serviços presenciais e garantir um direcionamento mais adequado dos doentes. Quando bem estruturada, esta abordagem pode de facto aumentar a eficiência do sistema. No entanto, ela também traz consigo desafios significativos — especialmente no caso de Portugal — que não podem ser ignorados.
1. O Perfil da População: Um Fator Crítico
Portugal tem uma população envelhecida e, em muitas regiões, com baixos níveis de literacia e literacia em saúde. Idosos e pessoas com pouca escolaridade enfrentam barreiras adicionais no uso de serviços telefónicos automatizados. Em momentos de aflição, é frequente não conseguirem comunicar eficazmente os seus sintomas — ou sequer dizer com clareza onde se encontram. Este não é um detalhe técnico: é um risco real para a segurança dos doentes.
2. A Ausência de Avaliação Clínica Direta
A pré-triagem telefónica, por mais avançada que seja, tem uma limitação intrínseca: a impossibilidade de observação direta do doente. Isto aumenta o risco de subestimar casos graves (com consequências potencialmente fatais), ou de sobrevalorizar situações não urgentes, gerando deslocações desnecessárias e ineficiência no sistema.
3. Casos de Risco Acrescido: Grávidas e Situações de Vulnerabilidade
Entre os grupos de maior risco, as grávidas merecem uma atenção especial. Situações como dores abdominais, perdas de sangue, ausência súbita de movimentos fetais ou sinais de pré-eclâmpsia (como dor de cabeça intensa ou visão turva) exigem avaliação médica imediata. A demora na resposta telefónica pode ter consequências graves não só para a gestante, mas também para o feto. A ansiedade gerada pela espera, aliada à incerteza sobre os sintomas, agrava o risco clínico e psicológico nestas situações. Este é mais um exemplo de como a triagem telefónica, se mal dimensionada ou mal comunicada, pode colocar vidas em perigo.
4. A Dimensão Crítica do Tempo de Espera
Tal como demonstrado pela experiência internacional, o tempo de espera é um indicador-chave de qualidade na triagem por telefone. Existem consensos bem estabelecidos:
• Menos de 1 minuto: é o padrão ideal para chamadas de urgência.
• Até 2 minutos: aceitável, se houver mecanismos de priorização (ex. menu automatizado com seleção de sintomas graves).
• Mais de 2 minutos: começa a comprometer a segurança do doente.
• Mais de 5 minutos: considerado inaceitável para triagem de urgência. No entanto, em Portugal, não é raro encontrar relatos de pessoas que ficam 30 minutos, 45 minutos ou até mais de uma hora à espera de atendimento. Estes tempos de espera são absolutamente inaceitáveis e representam um risco direto à vida. Uma chamada de emergência que aguarda 60 minutos não é um atraso: é um fracasso sistémico. Em muitos casos, esse tempo é suficiente para:
• A evolução irreversível de um AVC não tratado;
• A paragem cardíaca de um doente com dor torácica não assistido;
• A perda fetal numa situação de hemorragia obstétrica;
• A morte por hemorragia interna, asfixia ou outras condições agudas graves.
Estes atrasos não são apenas números frios em relatórios administrativos — são minutos que matam.
Exemplos Internacionais:
• Reino Unido (NHS 111): meta de atender 95% das chamadas em até 60 segundos.
• Dinamarca (1813): meta de atendimento até 3 minutos, com tempos médios entre 1 e 2 minutos.
• Suécia (1177): média entre 30 segundos e 3 minutos; algumas regiões ultrapassam isso em picos, mas o alvo é claro.
• Noruega: metas de atendimento até 2 minutos.
• França: resposta inicial em 20–30 segundos.
Todos estes países tratam o tempo de resposta como um fator estratégico e monitorizado. Publicam estatísticas regularmente e ajustam os recursos conforme a procura.
5. Portugal: Uma Realidade Muito Distante
Infelizmente, em Portugal, o telefone — que deveria ser uma ponte de acesso — transforma-se frequentemente numa barreira entre o doente e o médico. Uma barreira de tempo, de desorganização e de silêncio institucional. A espera é longa, imprevisível e perigosa. Em vez de salvar vidas, a linha telefónica torna-se, muitas vezes, uma muralha invisível onde se perde tempo precioso — tempo que, em urgência, pode custar vidas. Homens, mulheres e crianças morrem nesta espera. E, entre esses casos, estão também fetos que nunca chegam a nascer, vítimas da espera silenciosa de uma grávida à procura de ajuda que não veio a tempo.