O país volta a confrontar-se com o que muitos já chamam de “colapso anunciado” do Serviço Nacional de Saúde (SNS). A morte de uma grávida e da sua bebé no Hospital Amadora-Sintra expôs, de forma brutal, as fragilidades de um sistema que há muito mostra sinais de exaustão. O caso de Umo Cani, uma mulher guineense, transformou-se num símbolo trágico de um SNS que promete cuidados universais, mas que nem sempre os cumpre.
Avança o Diário de Notícias, na madrugada de sexta-feira, Umo Cani deu entrada no hospital em paragem cardiorrespiratória. Tinha 38 semanas de gravidez. A bebé foi retirada por cesariana de emergência, mas ambas não resistiram. Num primeiro momento, a ministra da Saúde, Ana Paula Martins, afirmou que a grávida não estava a ser acompanhada pelo SNS, declaração que indignou a família. Horas depois, vieram à tona, segundo a TSF, provas inequívocas de que a utente tinha sido seguida desde julho, com consultas nos cuidados primários em Agualva e acompanhamento obstétrico hospitalar nas semanas anteriores ao parto.
A própria Unidade Local de Saúde (ULS) Amadora-Sintra confirmou que a mulher tinha sido acompanhada, de acordo com a Rádio Renascença, explicando o erro com uma “falha grave” dos sistemas de informação clínica, que ainda não comunicam automaticamente entre centros de saúde e hospitais. Uma justificação que, se por um lado aponta para a raiz técnica do problema, por outro levanta uma questão: como é possível que, em pleno século XXI, a saúde pública portuguesa continue refém de falhas informáticas e descoordenação entre serviços?
O presidente do conselho de administração da ULS, Carlos Sá, apresentou a demissão, invocando dever ético e responsabilidade pessoal. A ministra, contudo, resistiu às pressões para abandonar o cargo. Questionada no Parlamento, respondeu de forma perentória: “Não, não me demito.” Ainda assim, fontes do Governo admitem que Ana Paula Martins já terá manifestado vontade de sair, devendo a decisão ser formalizada apenas no final do ano, por escolha do primeiro-ministro.
“Esta ministra nunca devia ter entrado neste Governo”, começa por dizer André Ventura, Presidente do CHEGA. “Para mim, é um ativo tóxico do Governo e é alguém que permanentemente não assume responsabilidade”, acrescenta. Neste caso, para o líder da oposição, não restam quaisquer dúvidas: “Só há uma pessoa que nunca assume responsabilidades: é a ministra da Saúde.”
“A doutora Marta Temido demitiu-se na sequência de uma morte num hospital e, agora, temos um Presidente da República que desapareceu porque o Governo é da sua cor política”, recordou o presidente do segundo maior partido.
Num país onde se multiplicam notícias sobre urgências encerradas, maternidades sobrelotadas e falta de médicos, o episódio do Amadora-Sintra soa como o estalar de um alarme há muito anunciado.
Especialistas em políticas de saúde afirmam que o SNS vive um momento de saturação sem precedentes, agravado por anos de desinvestimento, falta de planeamento e ausência de integração tecnológica. “Isto é uma ausência de investimento sério em sistemas digitais, que coloca em risco não só o trabalho dos médicos e de todos os profissionais de saúde, mas, acima de tudo, a segurança dos doentes (…)”, resumiu a FNAM (Federação Nacional dos Médicos) ao ECO online.
O drama de Amadora-Sintra não é um caso isolado: é o espelho de um SNS que luta diariamente contra a escassez e a burocracia, muitas vezes à custa de quem mais precisa, neste caso, uma mãe e uma filha que nunca chegaram a conhecer-se.
Ventura afirmou que “quem desistiu do SNS foi o Governo” e que “não é admissível que continuem a morrer mulheres e crianças por inoperância política”.
“Não pode haver mortes de pessoas que estão a contar com o serviço de saúde sem que ninguém seja responsável e que tenhamos um Governo que responsabiliza toda a gente menos a ele próprio.”
O líder da oposição voltou a associar o colapso da saúde à falta de controlo no acesso ao SNS por parte de cidadãos estrangeiros, defendendo a necessidade de seguros obrigatórios. “O nosso SNS não está apto para cuidar da saúde dos nossos, quanto mais a saúde dos estrangeiros”, declarou, reiterando que o partido “não aceitará mais desculpas nem remendos num sistema que está a desmoronar-se”.
O país assiste a um sistema de saúde que parece andar em círculos: governantes que prometem reformas, hospitais que acumulam tragédias e profissionais que, exaustos, tentam manter viva uma estrutura cada vez mais fragmentada. Enquanto a ministra se mantém em funções e o Governo pede tempo, Ventura insiste: “Não pode haver mortes de pessoas que estão a contar com o serviço de saúde sem que ninguém seja responsável e que tenhamos um Governo que responsabiliza toda a gente menos a ele próprio.”
“O Governo tem de agir, e nós estamos dispostos a ir até às últimas consequências para que o Governo proteja a saúde dos seus cidadãos, o que, neste caso, manifestamente não está a fazer”, conclui.