Foi bonita a festa, pá!
Juntaram-se todos os importantes.
Vestiram o fato das grandes ocasiões e das grandes omissões, afivelaram a máscara de pessoa importante, distante e ocupada, puseram a gravata vermelha que se impõe e claro, o cravo…
Porque o cravo é que não pode faltar…
Mesmo para aqueles que odeiam cravos.
Mesmo para aqueles que não gostam de flores.
Mesmo para aqueles que, por condição médica, por causa das inúmeras reacções alérgicas que impedem a proximidade a flores e a polens…até esses lá se obrigaram a colocar o cravo.
O que iria dizer o Chefe se não houvesse cravo?…
O que diriam os colegas importantes se um, de entre eles, ousasse esquecer o cravo à lapela?
Seria logo olhado de soslaio e com ar crítico.
E é sabido que na lista dos olhados de soslaio o mérito não interessa mas apenas as falhas em circuntâncias de relevo.
E não usar cravo em Abril é circunstância de relevo.
É crime de lesa revolução!
Injustificável!
Inaceitável!
Imperdoável!
E os carros de alta cilindrada lá desfilaram.
Todos com motorista. Todos pretos, cinza ou em ultima opção azul escuro… dependendo da posição ocupada na lista de prioridades na escolha. Mas, todos brilhantes. E a brilhar…
E lá foram, na procissão dos carros brilhantes, em fila. A fila dos carros que transportam pessoas importantes.
E fanfarras houve. E muitas. A compasso e a condizer.
Porque festa que é festa…tem que ter fanfarra! E quanto maior é a festança…maior é a fanfarra.
E cruzaram-se, os importantes.
E cumprimentaram-se, com o sorriso de ocasião, até porque em datas festivas as animosidades não contam. Nem as invejas. Nem os ódios.
Em data festiva todos são amigos. E todos se cumprimentam. E todos se dão os parabéns, do alto do cravo na lapela, como se lá tivessem estado…mas não estiveram.
Mas tal não é importante, para a ocasião.
E todos se sentaram na grande sala dos actos importantes, no lugarzinho marcado.
E todos fizeram um meio sorriso, circunspecto. De ocasião.
Porque eram pessoas importantes. Todos de fato. Todos de gravata vermelha. Todos de cravo.
E, após os discurso de pompa e circunstância, todos bateram palmas…mesmo que sem ouvirem ou concordarem ou sequer perceberem os discursos.
O que interessa é estar. Ver e ser visto.
O que interessa, mesmo, é fazer parte da procissão. E não destoar.
E, no fim, cantarem todos o Hino Nacional. Até os que não sabem a letra.
Basta mexer os lábios a preceito. Como se no Festival da Canção ou nos jogos de futebol. Mexer os lábios, a preceito. Mas de pé.
Porque, nos dias importantes, as homengens devem fazer-se de pé. E com o peito cheio de ar. E com ar impertigado. De pessoas importantes. Com as mãozinhas roliças e papudas, cruzadas, quase singelas, por debaixo da barriga proeminente, em atitude de discreta reverência.
E, depois, os intermináveis cumprimentos da praxe. Estudados. Obrigatórios. Sem significado. Mas obrigatórios. Sempre obrigatórios…
E, no fim, a saída, em procissão, para chegar ao carro, com o motorista, para ir para a manifestação de circunstância. Ou ir ter com a amante. Ou com o amante. Ou ir para casa…
Cá fora, uma criança frágil, pequena, sozinha…estende a mão e murmura, em súplica envergonhada…
Tenho fome.
Mas ninguém ouviu.
Ninguém quis ouvir.
As pessoas importantes, porque cientes e ufanas da sua importância, não precisam de ouvir e ver as circunstâncias incómodas. Acima de tudo porque reais.
Ou não quiseram ouvir.
Ou tudo fizeram para não ouvir.
São imunes…porque são pessoas importantes.
E as pessoas importantes não podem perder tempo com pequenos nadas.
Porque uma criança com fome…não passa de um pequeno nada. Um detalhe. Uma irrelevância…
Foi para isto que se fez Abril?
A revolução não se fez pela Liberdade? Pela Democracia? Pelo Pão?…
Quase cinquenta anos depois…
Falta cumprir Abril!
Mas isso nao interessa nada. O importante é que a festa, uma vez mais, correu bem, porque cheia de pessoas importantes.
Foi bonita a festa, pá. Apenas…