A esquerda portuguesa tem razão. O fascismo pode voltar. Não como ela pensa e onde pensa, presa que está aos seus escassos raciocínios. Não na Europa, certamente, e numa sociedade plural, fragmentada, multicultural e pós-tradicional como a nossa. Não é aqui. É na Rússia que ele despertou e sob as vestes de um fascismo tão conservador e ultramontano como nem nos países ibéricos alguma vez se sonhou. Mas isso a esquerda portuguesa nunca admitirá pois que tem uma dívida de gratidão para com os comunistas que a formaram e que lhe povoam ainda hoje os sonhos. É que a Rússia foi o berço deles e dizer mal de um país de que tanto foram devedores é para a esquerda portuguesa tão difícil como renegar pai e mãe.
Mas deixemos de lado os problemas psiquiátricos da esquerda portuguesa e vamos ao que interessa. O regime putiniano tem hoje todas as características do fascismo e algumas novas. Vejamos. O Estado totalitário controla completamente a economia privada através de um sistema de «prebendas» (como diria M. Weber), como Salazar, todos os cargos públicos são nomeados, o exército é a guarda pretoriana do poder, a polícia política depende directamente do presidente, o controlo dos media assumiu proporções inimagináveis e a Constituição vai sendo revista à medida das exigências da perpetuação dos dirigentes no poder.
Então no plano ideológico nem queiram saber; a nação do fascismo (não confundir com a nação revolucionária de 1789) chama-se agora a pátria russa digna de exigir aos seus filhos todos os sacrifícios. Nem falta a influência hegeliana para fazer da guerra o segredo da transição da consciência dos cidadãos (da para si para a em si), o isolamento político transformou-se num novo valor moral redentor da identidade da pátria e o imperialismo é um desígnio histórico de uma nação arvorada a «terceira Roma», pura, ortodoxa e salvífica. No plano interno, o inimigo já existe e a denúncia é um dever patriótico. A sociedade tende cada vez mais para a militarização e o valor da vida humana não entra nos cálculos do regime. Acresce que a religião ortodoxa se transformou num elemento compulsivo do nacionalismo, tal como nos fascismos mais conservadores, pelo que a igreja ortodoxa é sabuja do poder e aí está para abençoar os «heróis» assassinos. O ideal russo é, aliás, transformar o estado numa igreja, como explica Dostoiewsky nos Irmãos Karamazov.
Querem mais? É que também lá está o culto da personalidade virilizada do líder supremo e das características supra-humanas do «povo» russo. O próprio racismo já desponta contra os islamitas.
Biden tem toda a razão quando nos diz que a Ucrânia não é só a Ucrânia; é um choque civilizacional que está em causa e por detrás da Ucrânia está todo o Ocidente ou seja, a democracia liberal, plural, tolerante e civilizada em que vivemos. E o próprio Islão também irá na voragem putiniana; é uma questão de tempo. Não tenhamos ilusões. Tudo é tão simples como isto. A história tem momentos destes em que tudo se condensa numa opção radical.
Luíz Cabral Moncada
(Professor de Direito)