Montenegro, ou a arte de nada perceber

Foi um trauma e tanto. O PSD tinha chegado a 10 de Março encavalitado na imprensa e nas circunstâncias. Não é todas as décadas – em países normais, não é sequer todos os séculos – que uma eleição é tão generosamente oferecida às oposições. Os detalhes sórdidos da crise de Novembro dispensam que se lhes regresse: perante o que então se passou, era impensável que o governo socialista não caísse – e era impensável que, chegadas as eleições, o PS não acabasse desbaratado. A história das últimas legislativas parecia escrita e fechada no instante da sua convocação. 

Fez mal o país em subestimar Luís Montenegro. Foi a custo e com prestação de virtuoso, afinal, que o líder do PSD inverteu o que fora em tempos o rumo certo e natural das coisas. Fraco projecto, fraca equipa, fraca presença, fraca, timorata e ziguezagueante campanha – contados os votos, o PSD conseguiu o impossível, e arrancou uma vitória de Pirro de um triunfo que tudo sugeria esmagador. Nem maré laranja, nem maioria absoluta, nem, sequer, uma superioridade visível, de votos ou de mandatos, sobre os socialistas. Com mar sereno e vento favorável, a nau AD foi afundar-se mesmo à beira do porto. 

Aos generais vitoriosos, os romanos concediam, bem no coração do fórum, a honra espalhafatosa de um triunfo feito de marchas, aclamações e pétalas perfumadas. Era a única ocasião em que a um homem era permitida a toga púrpura dos reis depostos. Montenegro exigiu-a na derrota. Vindo esfarrapado de campo de batalha em que repetira, tantas vezes quanto lhe fora permitido dizê-la, a fórmula hoje trágica do ‘não é não’, quis que o recebessem com a reverência devida a um chefe conquistador. Mas, afinal, o ‘não’ do país fora não a Montenegro. Os portugueses puniram o PS – e puniram-no a ele. Olharam-no de frente, ouviram-no com atenção e concluíram que, sem o penhor de uma direita autêntica que lhe servisse de equilíbrio e orientação, um governo PSD significava risco demasiado grande de continuidade socialista. Por isso quiseram uma direita parlamentar forte com um PSD fraco. E por isso votaram no CHEGA.

Ou Montenegro não o entendeu, ou finge não ter entendido. É irrelevante qual das duas é verdade: o efeito é igual. Na eleição do novo presidente da Assembleia da República – figura que, não o esqueçamos, é a segunda do Estado – Montenegro exigiu da direita – do CHEGA – apoio gratuito e servil, como se a função de Ventura nesta legislatura não fosse, específica e explicitamente, a de ser freio e contrapeso aos maus instintos de São Caetano. Maus instintos que o eleitorado intuiu e que o PSD não tardou a confirmar: frustrado com a recusa do CHEGA em ser mero joguete, Montenegro logo correu para os braços do PS. Foi assim que, em golpe de alquimia inversa, se transformou a maioria de direita reformista saída de 10 de Março na realidade decepcionante de um novo bloco central, situacioanista e esclerótico. Foi um erro? Decididamente: para o país e, como o tempo não deixará de provar, para o PSD. Que não venham queixar-se depois. 

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